O que o caso Huawei pode custar a Portugal
A inclusão da Huawei numa "lista negra" de empresas, pelos Estados Unidos, tem repercussões globais, às quais Portugal e os consumidores nacionais não estão imunes. Não se trata apenas da questão da atualização de equipamentos. A prazo, esta guerra comercial e a forma como o país se posicionar na mesma, poderão ter consequências na economia e até afetar as relações do país com duas superpotências mundiais.
No imediato, a principal preocupação dos consumidores portugueses prende-se com os telemóveis e tablets da empresa chinesa (marcas Huawei e Honor). Depois de a Google ter anunciado que os novos equipamentos da tecnológica deixarão de poder ser atualizados através dos seus sites e aplicações, e várias outras empresas, nomeadamente fornecedores de componentes, suspenderem também as relações com a Huawei, a incerteza é compreensível.
Numa resposta enviada ao DN, a Huawei assegurou - como tem vindo a fazer - que os equipamentos "vão continuar a funcionar normalmente"e que "continuará a fornecer atualizações de segurança e serviços de pós-venda, cobrindo os equipamentos que foram vendidos e que ainda estão em stock a nível global". Lembrou ainda que o Android "é um sistema [operativo] de código aberto" e que a própria empresa "tem contribuído substancialmente para o seu desenvolvimento e crescimento em todo o mundo" Ainda assim, esta semana, a própria DECO - Associação para a Defesa dos Consumidores aconselhou os utilizadores a "aguardarem por mais desenvolvimentos antes de comprarem um novo dispositivo da Huawei".
Outra preocupação no horizonte é a implementação da revolucionária rede de 5G. A empresa lembra ser "pioneira na investigação e desenvolvimento desta tecnologia" e que, só entre 2017 e 2018, "investiu quase 1,4 mil milhões no desenvolvimento de produtos 5G".
No Reino Unido, já foram divulgadas estimativas que apontam para um agravamento de oito mil milhões de euros dos custos caso a Huawei não seja a parceria das operadoras na implementação das redes 5G. E em Portugal, embora ainda não se fale em números, o presidente da NOS, Miguel Almeida, já estimou que "se a decisão da Europa for no sentido de não permitir o desenvolvimento das redes 5G" da Huawei, isso irá levar a um "atraso de, pelo menos, dois anos" para a sua implementação no continente, o que naturalmente significa um atraso também no nosso país.
Mas com os Estados a pressionarem ativamente os seus aliados para não colaborarem com a empresa no 5G, devido a alegados riscos de segurança, a questão dos custos e dos calendários deixou de ser a única a pesar.
Em todo o caso, para João Castro, professor da Nova School of Business and Economics e diretor do centro de Digital Business and Technology daquela instituição, "ainda é demasiado cedo" para perceber se um eventual recuo em relação à Huawei no 5G será penalizador para os consumidores. "Por detrás desta guerra, vão haver sempre os que se vão posicionar para se aproveitarem dela, para trazerem as suas soluções", diz. "Mas para o conseguirem terão de vincar que a mudança não é assim tão chocante e vão tentar manter o status quo em termos de relação custo/benefício", admite.
Por outro lado, o especialista em digital e tecnologia vê um benefício no horizonte: o facto de se trazer para o debate do dia a dia a questão dos limites da privacidade que várias empresas tecnológicas, chinesas ou não, têm a capacidade de ultrapassar. "Só peritos e pessoas especializadas na área se preocupam com o que é possível fazer em termos de surveillance. A tecnologia não é necessariamente má, nem boa. Depende do que vamos querer fazer com ela. E essa discussão é importante", diz. Para João Castro, ao nível "dos valores, daquilo que queremos enquanto sociedade", há "uma décalage clara entre o bloco ocidental e o chinês". Mas não há monopólios de boas práticas: "Já ficou provado que o Facebook por mais do que uma vez portou-se como um bad player", ilustra.
Mas por muito que esta crise - como todas as crises - possa abrir algumas perspetivas interessantes à escola global, Portugal dificilmente passará por ela sem algumas consequências. Pelo menos no plano diplomático onde, atualmente, o país parece estar entre a espada e a parede na relação com as duas superpotências.
O governo tem sido notoriamente comedido nas declarações sobre o tema Huawei, com o ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, a limitar-se a informar que "na altura própria" será conhecida a posição oficial sobre esta matéria. E parece estar ainda a apostar numa difícil mais ainda possível (ver texto ao lado) reaproximação entre os Estados Unidos e a China.
O momento, manifestamente, não é o ideal para tomadas de posição definitivas. Recorde-se que, em março, meses depois de o presidente chinês, Xi Jinping, ter assistido em Lisboa à assinatura de um memorando entre a Altice e a Huawei, o embaixador norte-americano em Lisboa, George Edward Bliss, acompanhado pelo presidente da Comissão Federal de Comunicações dos Estados Unidos (FCC), Ajit Pai, assumiu sem rodeios que a eventual concretização da parceria poderá afetar as relações bilaterais com o nosso país. No mesmo mês, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa esteve na China, a devolver a visita do homólogo asiático e a celebrar com as autoridades de Pequim um acordo no sentido de estreitar as relações entre os dois países.
António Martins da Cruz, diplomata e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, assume que a posição portuguesa não é fácil. "Temos relações com a China há cinco séculos e temos justamente essas relações criada pela história. Por outro lado, somos aliados dos Estados Unidos na NATO e temos de ter em atenção a posição dos Estados Unidos", lembra.
"Mas isso não significa que temos de nos deixar influenciar por um ou por outro lado", acrescenta, lembrando que, até agora, no caso específico da Huawei, "as autoridades competentes em Portugal disseram que de um ponto de vista técnico, não viam problema nenhum em concorrer à futura rede de 5G".
Para Martins da Cruz, "Portugal não deve resolver sozinho" o que fazer, sendo aconselhável "coordenar com os países da União Europeia (UE) e da NATO" a sua posição. Em relação à UE, apesar de a Comissão Europeia já ter desaconselhado as parcerias com a empresa chinesa, o diplomata lembra que "quem manda é o conselho [europeu], que ainda não tomou qualquer posição. Nem os grandes países da União Europeia - França, Alemanha, Itália - tomaram posição". Já no que respeita à NATO, defende, é importante "ter em atenção as recomendações" da organização, "sobretudo dos membros europeus da NATO".
Na mesma intervenção, nesta quinta-feira, em que reiterou que a Huawei é "muito perigosa" de uma perspetiva "de segurança e militar", o presidente dos Estado Unidos, Donald Trump, admitiu que afinal a empresa de telecomunicações até poderá sair da lista negra na qual há incluiu há alguns dias. Para isso, referiu aos jornalistas numa conferência de imprensa na Casa Branca, basta que se chegue a um acordo comercial com a China. "Se fizéssemos um acordo, poderia imaginar a Huawei a ser possivelmente incluída sob alguma forma ou em alguma parte do mesmo", disse.
Pode parecer incoerente o presidente dos Estados Unidos admitir envolver uma empresa que considera uma ameaça num acordo comercial. Mas, nesta história, as questões comerciais e de segurança têm andado de mãos dadas desde o primeiro dia.
A desconfiança norte-americana em relação à Huawei coincide praticamente com a entrada definitiva desta no mercado norte-americano, como parceira de gigantes locais das telecomunicações, no início desta década. Ren Zhengfei, fundador da empresa chinesa, tinha um histórico ligado ao Exército de Libertação Popular, no qual foi engenheiro, que não escapou aos serviços de informação dos Estados Unidos. Desde o início falava-se também num avultado empréstimo (não confirmado) à empresa por parte de um banco estatal chinês, o que "provaria" a alegada ligação ao governo de Pequim. Mas foram sobretudo incidentes relacionadas com alegada espionagem industrial que agravaram a desconfiança em relação à empresa.
O mais notório, em 2012, envolveu o Tappy, um robô desenvolvido pela norte-americana T-Mobile para simular os movimentos dos dedos nos ecrãs dos smartphones. A Huawei era fornecedora de equipamentos para aquela empresa e dois dos seus técnicos foram apanhados a filmar e a fotografar o robô em funcionamento, durante uma visita às instalações. A T-Mobile viria a avançar com uma ação em tribunal contra a empresa, que foi condenada a pagar uma indemnização, apesar de não ter sido dada como provada a espionagem.
Em dezembro de 2018, a executiva da Huawei, Meng Wanzhou, filha do fundador da empresa, foi detida no Canadá a pedido dos Estados Unidos. Uma detenção que aconteceu precisamente durante mais uma ronda das até agora infrutíferas negociações entre os Estados Unidos e a China tendo em vista a assinatura de um novo acordo comercial. Foi acusada, por um tribunal de Nova Iorque, de ter contornado as sanções dos Estados Unidos ao Irão, sendo a multinacional chinesa também responsabilizada pelo alegado roubo de propriedade intelectual da T-Mobile.
Mais recentemente, os Estados Unidos têm pressionado os seus aliados a rejeitaram parcerias com a empresa para a implementação das novas redes de 5G. Oficialmente, estão em causa questões de segurança. Mas os críticos dizem que a América teme perder o comboio na área das telecomunicações.