Primeiro foi Jeff Bezos e depois o investigador que contratou, Gavin de Becker. Agora um relatório de dois especialistas das Nações Unidas confirma as alegações: o telemóvel do proprietário da empresa Amazon foi pirateado através do WhatsApp graças a um vídeo enviado pelo príncipe da coroa saudita Mohammad bin Salman.."O alegado hacking do telefone do Sr. Bezos, e de outros, exige uma investigação imediata por parte das autoridades norte-americanas e de outras autoridades relevantes", afirmaram os relatores especiais Agnès Callamard e David Kaye num comunicado divulgado em Genebra pelo Gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Disseram que qualquer investigação sobre o alegado incidente em maio de 2018 também deve olhar para o "contínuo, plurianual, direto e pessoal envolvimento do príncipe herdeiro nos esforços para atingir adversários"..A francesa Callamard, especialista da ONU em execuções arbitrárias e extrajudiciais, e o norte-americano Kaye, especialista em liberdade de expressão, mostraram-se "seriamente preocupados". "As informações que recebemos sugerem o possível envolvimento do príncipe herdeiro na vigilância do Sr. Bezos, numa tentativa para influenciar, se não mesmo silenciar, as notícias do The Washington Post sobre a Arábia Saudita", escreveram eles. Bezos, um dos homens mais ricos do mundo, além de fundador e dono da Amazon, é o proprietário do The Washington Post, que contratou em setembro de 2017 Jamal Khashoggi como colunista. O jornalista e ativista saudita foi assassinado em outubro de 2018 no consulado de Riade em Istambul.."As circunstâncias e o momento da pirataria e da vigilância de Bezos também reforçam o apoio a mais investigações por parte dos EUA e de outras autoridades relevantes sobre as alegações de que o príncipe herdeiro ordenou, incitou ou, no mínimo, estava ciente do planeamento, mas não conseguiu parar a missão que atingiu mortalmente o Sr. Khashoggi em Istambul", continua o comunicado.."Numa altura em que a Arábia Saudita estava supostamente a investigar o homicídio do Sr. Khashoggi, e a processar aqueles que considerava responsáveis, estava a fazer clandestinamente uma enorme campanha online contra o Sr. Bezos e a Amazon, atacando-o principalmente na qualidade de proprietário do The Washington Post.".As alegações foram de imediato rejeitadas por Riade, cuja embaixada em Washington as classificou de "absurdas".."Notícias recentes da comunicação social que sugerem que o reino está por trás de um hacking no telefone do Sr. Jeff Bezos são absurdas. Pedimos uma investigação sobre estas alegações para que possamos ter todos os factos", disse a Embaixada da Arábia Saudita no Twitter..Os dois especialistas revelaram uma análise de técnicos da FTI Consulting ao iPhone de Bezos que descobriu que deve ter sido pirateado em 1 de maio de 2018 com um arquivo de vídeo MP4 enviado de uma conta usada pelo príncipe herdeiro e governante de facto. Os dois tinham trocado números de telefone um mês antes, quando se encontraram em Los Angeles. A análise revelou que poucas horas depois de receber o vídeo saíram do smartphone de Bezos 126 MB de dados. Este padrão continuou durante um período de "alguns meses", com gigabytes de informação a serem exportados do telemóvel..Mensagens ameaçadoras.O relatório indica que a análise forense comprovou que Bin Salman enviou mensagens via WhatsApp a Bezos em novembro de 2018 e em fevereiro de 2019, nas quais revelou informações sobre a vida pessoal de Bezos que não estavam disponíveis em fontes públicas..Numa mensagem, Salman enviou uma fotografia de uma mulher parecida com Lauren Sanchez, a apresentadora de TV com quem Bezos tinha um caso extraconjugal, e no qual estava escrito: "Discutir com uma mulher é como ler o acordo de licenciamento de software. No final temos de ignorar tudo e concordarmos." Não era público que na época Bezos mantinha a relação nem que estava em conversações com a mulher, Mackenzie, para se divorciarem..Em fevereiro de 2019, dois dias depois de Bezos ter sido informado ao pormenor, em duas chamadas telefónicas, sobre a campanha online contra si e contra a Amazon, recebe a seguinte mensagem de Mohammad bin Salman: "Jeff, tudo o que ouves ou que te dizem não é verdade e é uma questão de tempo até saberes a verdade, não tenho nem a Arábia Saudita tem nada contra ti nem contra a Amazon.".A análise também sugeriu que os hackers podem ter usado um tipo de spyware usado em outros casos de vigilância saudita, como o malware Pegasus-3 do NSO Group..Para os relatores especiais, o caso evidencia também "a necessidade premente de uma moratória sobre a venda e transferência global de tecnologia de vigilância privada"..O amigo de Trump.O caso complica-se porque, em janeiro de 2019, o National Inquirer expôs a relação de Bezos com Sanchez. O tabloide revelou a fonte, tendo alegado que era o irmão de Lauren Sanchez. Bezos não acreditou e o investigador privado Gavin de Becker começou a trabalhar no caso. No mês seguinte, o bilionário acusou o jornal de chantagem e deixou no ar a suspeita do envolvimento saudita..Nesta altura, Donald Trump não se conteve e escreveu um texto em que zombou do empresário de Seattle e chamou-o de Bozo, um palhaço: "Sinto muito em ouvir as notícias sobre Jeff Bozo ter sido derrubado por um concorrente cujas notícias, pelo que percebo, são muito mais precisas do que as reportagens do seu jornal lobista, o Amazon Washington Post.".Em março, no The Daily Beast, Becker apontou o dedo ao reino da casa de Saud. Não há provas concretas da ligação entre o tabloide e Riade. Mas a relação entre o proprietário do Enquirer e o regime saudita levanta as maiores dúvidas..Como o seu amigo de décadas Donald Trump, David Pecker tem cultivado relações estreitas com a Arábia Saudita e em especial com o príncipe herdeiro. Pecker visitou o príncipe em Riade e meses depois, em março de 2018, a empresa proprietária do Inquirer, a AMI, produziu 200 mil exemplares de uma revista a exaltar a "magia" da Arábia Saudita..Em 2018, Pecker foi ouvido no âmbito das acusações de que Trump violou a lei do financiamento eleitoral. O dono do jornal admitiu ter pago à antiga modelo da Playboy Karen McDougal para que ela contasse a história da sua relação com Donald Trump, mas o texto nunca foi publicado..Pela primeira vez na história do semanário, o National Inquirer deu o apoio a uma candidatura presidencial: à de Trump e não teve problemas em fazer títulos como "Hillary: corrupta! Racista! Criminosa!" ou em fazer uma campanha em que afirmava que a candidata democrata, se fosse eleita, morreria nos primeiros seis meses devido à saúde precária..Prova de que o empresário nova-iorquino gozava de tratamento especial, quando Melania recusa dar a mão ao marido no tapete vermelho da visita a Israel, Pecker disse à redação: "Eu não vi isso" - e nem uma linha foi escrita sobre o tema, conta a The New Yorker.