Foi considerado uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time e o seu restaurante de São Paulo está entre os melhores do planeta há vários anos. Tem um episódio dedicado a si na premiada série Chef"s Table disponível na Netflix. Alex Atala esteve em Portugal para o festival Foodtopia, em Lisboa..O regressar à Europa faz-lhe recordar os tempos quando, com 18 anos, saiu do Brasil e veio para a Bélgica pintar paredes, ainda antes de cozinhar? Sempre, é sempre muito emocional. Porque de alguma forma foi o começo da minha vida. Digo sempre que tenho duas vidas, uma antes da cozinha, onde estive no punk rock, na droga, a vida de uma grande folia, de uma confusão ou, melhor, de uma energia mal canalizada, e depois a outra vida, aqui na Europa, onde na cozinha ganhei disciplina, foco e novos valores..Para o festival de Lisboa trouxe o seu prato com formiga da Amazónia. Porquê essa escolha para trazer ao público de Lisboa? Era o que podia trazer para cozinhar para mais de mil pessoas durante dois dias. Uma coisa é fazer jantares para 12 pessoas, onde posso usar vários ingredientes. Outra é fazer uma escolha para um evento como este, para ser barato e delicioso. Além disso, é algo que conta a minha história..Como é que esse se tornou um dos seus pratos icónicos? Quando vou para a Amazónia vou andando pelos lugares e abro as possibilidades de ver o que há por lá. E foi assim que fui parar à cidade de São Gabriel das Cachoeiras, que é um local na divisão do Brasil com a Venezuela e Colômbia. É um dos ambientes mais complexos da Amazónia, uma área com 23 etnias indígenas e 21 idiomas diferentes e vivos. Foi lá que conheci a Dona Brazi, que é considerada a melhor cozinheira da região. E logo que cheguei perto dela, ansioso, trouxe-me uma cuia [espécie de cabaça] com um caldo preto e com um monte de formigas dentro para eu comer. Como aprendemos que não se come insetos, molhei a ponta da colher no líquido e provei. E dali veio o sabor de gengibre e capim santo, sabores esses que não estão presentes na Amazónia. Fiz-lhe a pergunta: qual a erva que tinha colocado? E ela disse que o sabor vinha da formiga. Trinquei a formiga e vi, de facto, de onde vinha aquele sabor. Fiquei muito surpreendido. Acabei por levar as formigas para o meu restaurante para trabalhar e ensaiar pratos. Depois decidi levar gengibre e capim-limão para fazer para a Dona Brazi. Fui à Amazónia, preparei o prato da mesma forma como ela o tinha feito para mim, chamei-a e ela, que é indígena, veio toda contente porque um chef de São Paulo cozinhou para ela. Quando provou, também num molho negro e numa cuia, fez uma cara de desapontamento, mesmo de deceção. Perguntei-lhe se não tinha gostado e ela disse: "Tem gosto de formiga!" [Risos]. Nesse momento percebi o que são expectativas, porque não estamos a falar só de formiga, estamos a falar da interpretação cultural de um sabor. Para mim formiga tem gosto capim santo e gengibre, para ela capim santo e gengibre sabe a formiga..E como foi a reação dos pratos de formiga no seu restaurante DOM, com duas estrelas Michelin? Os primeiros ensaios foram um pouco frustrantes, porque tinha muita insegurança em colocar a formiga no prato. Fiz uma farofa de formiga moída, fiz pó de formiga, fiz uma tapenade com formiga. As pessoas diziam que era muito interessante o sabor de capim-limão e gengibre combinado com a formiga. Enchi-me de coragem e coloquei uma formiga em cima de um pedaço de abacaxi. Só assim as pessoas entenderam que aquele sabor incrível é da formiga..Citaçãocitacao"Digo sempre que tenho duas vidas, uma antes da cozinha onde estive no punk rock, na droga, a vida de uma grande folia e depois a outra vida, aqui na Europa, onde na cozinha ganhei disciplina.".O chef teve e tem um papel importante na modernização da cozinha brasileira. Como é o momento atual da cozinha no Brasil? Hoje em dia os jovens cozinheiros brasileiros dão a mesma atenção à cozinha brasileira que dão à cozinha italiana ou francesa. O Brasil está a ver crescer muitos jovens chefs. Dou um exemplo do chef Luiz Filipe, do restaurante Evvai, em São Paulo, que faz uma cozinha essencialmente italiana com muitos ingredientes brasileiros presentes. Isso envaidece-me. Pela primeira vez estamos a conseguir contaminar a outras cozinhas e a levar os nossos sabores. Hoje em dia, a maior estrela é Manu Buffara, que é uma mulher que está em Curitiba a fazer uma cozinha com uma técnica muito elaborada, de uma grande elegância, muito feminina, uma cozinha muito brasileira. Muitos ingredientes regionais com a fronteira de novos sabores, mas com as receitas tradicionais do Paraná, que não é muito presente na cozinha brasileira..Tem duas estrelas Michelin no DOM. Ambiciona a terceira? Sim, vamos sempre ambicionar a terceira estrela. É importante ter objetivos. É lógico que quero e vou brigar por ela. Talvez eu nunca venha ter, mas não vai doer..Mas o que acha que falta? O meu maior inimigo é achar que já acabou... mas é lógico que ainda tenho muitos sonhos, como por exemplo continuar a trabalhar pela Amazónia e poder mostrar a um jovem português, europeu, que também tem de me ajudar a lutar pela Amazónia. Mas interessa mandar boas mensagens do que há lá e não apenas as más notícias. Tenho o Instituto de Comida e Cultura (ATÁ), mas não queremos fazer do índio um produtor de comida, queremos que ele continue sendo local, orgulhoso e que veja através da comida a sua identidade e uma forma de crescer. Porque já tem as partes más em seu redor: o comércio ilegal de madeira, as drogas e narcotráfico, a mineração ilegal. Acredito que a comida pode ser uma opção para eles. O episódio que lhe foi dedicado na série do Chef"s Table da Netflix mudou alguma coisa na sua vida? Sim, mudou a maneira de as pessoas me verem, mas também a forma de eu olhar para mim mesmo e para o meu restaurante. E é algo que está no mundo inteiro, é mundial. Nunca imaginei que uma coisa daquelas acontecesse na minha vida. Não só para mim, mas também para as pessoas que aparecem naquele episódio e que tiveram as suas vidas transformadas. Você entende que um chef pode ter uma voz maior e que pode ser usada não só em seu benefício, mas nas coisas que acredita e defende. Provavelmente, sem o episódio do Chef"s Table eu não podia ter servido formiga em Lisboa..O que é que a cozinha portuguesa lhe desperta? Tanta coisa... É uma cozinha que, de alguma forma, está presente no Brasil. A cozinha portuguesa entra na minha vida por volta de 1994 quando um chef belga, que tinha um restaurante muito bom em São Paulo, convida um jovem chef português para fazer um jantar e um encontro com outros chefs, e esse jovem era o Vítor Sobral. Lá fiz uma nova amizade e foi a primeira vez que comi uma verdadeira açorda. E ali começo a entender e a conhecer uma nova cozinha e ganho um novo amigo, ou um ídolo, e a cozinha portuguesa entra na minha vida de uma forma mais forte. Venho cá várias vezes e gosto de conhecer as várias cozinhas de Portugal e perceber como o mesmo ingrediente é tratado de várias formas: os peixes, os borregos, os vinhos... Antes da pandemia vim ao Alentejo, à quinta de um amigo, onde cozinhei com tudo do mesmo local, tudo. Nem na Amazónia eu consigo fazer isso..Última pergunta: quanto de punk ainda existe em si? Bastante [risos], o suficiente para cruzar o Atlântico com quase dois quilos de formigas da Amazónia..filipe.gil@dn.pt