O pesadelo dos que ficaram fechados em casa
A génese do medo em tempo do franquismo. Passado em plena Guerra Civil e três décadas depois, o filme coqueluche do cinema espanhol em 2019 narra a história verdadeira de um perseguido de Franco numa aldeia da Andaluzia, um homem que para não sofrer retaliações do regime escondeu-se em casa durante 30 anos. Um "topo" conforme foram apelidadas estas vítimas. O filme é um ensaio sobre a vida em confinamento mas é também um convite a um pensamento profundo: para nos livrarmos da morte, às vezes, deixamos passar a vida.
Higinio (um genial Antonio de la Torre) é um republicano que na sua aldeia se vê perseguido pelos nacionalistas. Depois de tentar fugir, acaba por regressar a casa e esconder-se numa parede falsa. Cedo percebe que a partir do momento em que pisar o chão da rua será instantaneamente fuzilado. Com a ajuda da mulher, vai conseguindo sobreviver de forma invisível. Mas o tempo passa e Higinio nunca se atreve a ultrapassar a porta. A vida deste casal parece normal mas é de pura clandestinidade, mesmo quando têm um filho que é apresentado à aldeia como um sobrinho de um outro povoado. Esta história verdadeira é apenas uma de muitas que foram descobertas nos anos 1970 - exilados nos próprios lares num Estado fascista que demorou a deixar para trás traumas de guerra.
La Trinchera Infinita é ainda uma tese de ódios e vinganças recalcadas, metáfora direta e sem paninhos quentes dos tempos em que o mundo hoje está. Jon Garaño, Jose Mari Goenega e Aitor Arregi filmam o esconderijo deste homem a quem o tempo consumiu com uma intensidade marcante. Nas suas duas horas e meia nunca fazem abrandar uma tensão que aborda diretamente o pesadelo da falta de liberdade. A sensação de claustrofobia e o trabalho de escuridão da luz, bem como os silêncios, preconizam uma sensação de horror próxima aos filmes de terror. Aliás, o suspense puramente cinematográfico tem também o toque de Luiso Berdejo, argumentista ligado ao cinema de género (Rec, Quarentena, Insensíveis). Não é mesmo por acaso que a inquietação encenada acabe por ganhar um tempero do surreal, mesmo quando os mecanismos do suspense são do mais puro que o cinema nos pode dar, de uma espreitadela por um buraco ao som de uma pegada no chão...
Mas se o filme é um compêndio na criação de angústia e de tristeza, a câmara deste trio espanhol interessa-se também muito pelas cenas da intimidade deste casal. Uma conjugalidade que é seca mas sincera, desesperada mas sentida. Uma história de amor que não atrapalha a mensagem de resistência. Uma mensagem premente numa altura em que o aparecimento de novos fascismos importa saber preservar o ato de resistir. Os fantasmas de uma Espanha cruel criaram um jogo conceptual de cinema que coloca no ar a importância de escolhermos olhar. O medo come a alma mas a vida segue, mesmo quando é sabotada.
Vencedor de dois Goya (incluindo melhor atriz), o filme foi ainda galardoado com a Concha de Prata no Festival de San Sebastián. Seguramente, nos antípodas desse académico Enquanto a Guerra Durar, de Alejendro Amenábar, esse estreado nos cinemas portugueses.
**** Muito bom