O passado ignorado do escritor Saramago
Quando se pensava que sobre José Saramago estava tudo dito e escrito, vai revelar-se hoje em Lanzarote que não é verdade, e que o escritor produziu dezenas de textos num período da sua vida que até agora são desconhecidos. Poesia, bastantes contos, teatro e alguma prosa foram alguns dos géneros encontrados no baú de José Saramago, que poderão mudar a forma de entender o seu processo de formação como escritor.
A descoberta foi feita pelo filólogo Fernando Gómez Aguilera, também comissário da mostra que a partir de hoje, às 20:00, abre as portas na Fundação César Manrique, em Lanzarote, e será a sua exposição pública que confirmará exactamente o contrário do que até agora se tem afirmado, que José Saramago teve uma intensa vida de escritor no período entre os primeiros rascunhos e o livro Terra do Pecado (1947) e o seu regresso à escrita com dois livros de poesia (em 1966 e 1970) e o romance Manual de Pintura e Caligrafia (1977).
Segundo o comissário da exposição La Consistencia de los Sueños, este espólio foi encontrado quando remexia nos arquivos pessoais do escritor, depositados em caixas que ainda estavam por abrir na sua casa na ilha das Canárias, para preparar a grande retrospectiva sobre o autor português que hoje se inaugura. Diz o responsável que 'não acreditava no que os seus olhos viam' e que confrontou imediatamente Saramago com a documentação que tinha nas mãos e que este 'lhe disse ser impossível o que estava a dizer' e que 'provavelmente estaria enganado na sua análise e a confundir com outros rascunhos, porque em 1944 eu não escrevia nada'. Mas Aguilera respondeu-lhe que essas eram as datas, que 'as folhas têm o mesmo tipo de letra que as outras, a máquina em que dactilografas é a mesma, o mesmo tipo de escrita. José, trabalhaste muitíssimo entre 1944 e 1953, de uma forma intensíssima', disse-lhe então.
O que o estudioso da obra do escritor português encontrou foram dezenas de manuscritos que datavam dos anos em que José Saramago aparentemente teria desistido de escrever e do qual nem o próprio autor se lembrava já. Só ao ser confrontado fisicamente com os muitos originais que estavam na sua própria bagagem de viajante é que Saramago aceitou a realidade. Diz Aguilera que 'nem o próprio se recordava de ter escrito aqueles textos, que são uma parte esquecida da sua vida como escritor' que nem o autor nem os investigadores que nas últimas décadas o têm pesquisado e estudado sabiam existir. Por outro lado, acrescenta, estes trabalhos irão mudar a percepção que se tinha da sua formação, 'já que se pensava que após as primeiras tentativas quase frustradas de publicar, o escritor teria desistido por completo de escrever. Isso não foi verdade e a longa série de manuscritos que aqui expomos comprova que Saramago ainda insistiu durante vários anos no esforço de publicar. Não é substantivo nem comparável ao que virá a escrever, mas é importante para a reconstrução do genoma do escritor'.
Está-se assim perante uma série de originais que desfaz a tese de que o escritor abandonara em definitivo e em determinada altura da vida a escrita - por necessidades financeiras, pois casara e tivera uma filha - até ao momento em que retoma a sua ligação ao meio editorial e jornalístico e regressa às letras por via da poesia e das crónicas e editoriais, fase que culmina com a sua demissão do cargo de director adjunto do Diário de Notícias, após o golpe de 25 de Novembro de 1975, que lhe coloca, por ficar desempregado, a hipótese de se dedicar definitivamente à literatura.
A exposição La Consistencia de los Sueños está em exibição em duas salas da própria Fundação César Manrique, no arredores de Arrecife, e devido à sua dimensão contará com um terceiro pólo no centro da cidade, que será inaugurado amanhã pelo ministro da Cultura do Governo de Espanha, César Antonio Molina, que se desloca a Lanzarote especificamente para se encontrar com José Saramago, de quem também é admirador e estudioso. De Portugal, virá uma delegação da Fundação José Saramago e vários convidados. A representação do nosso país ficará a cargo do embaixador português. Está em exibição até 16 de Janeiro de 2008, data em que iniciará um périplo mundial. Certos estão já alguns destinos, Nova Iorque e Madrid, mas o comissário gostaria que a apresentação que se segue fosse em Lisboa.