O pano continua a subir apesar das incertezas políticas
Sete jovens sobre rodas, uns montados em bicicletas e outros sobre patins, param em frente ao Teatro Constantino Nery, em Matosinhos, onde o público aguarda pela estreia de mais um espetáculo do Teatro Experimental do Porto (TEP). Os atores, todos amadores, entram no edifício e, ainda no átrio, interagem com as pessoas. Sussurram sete histórias distintas com vista a encontrar Moche, o amigo da mochila branca de quem perderam o rasto no caminho entre o ensaio e o regresso a casa. Seguem depois para a sala que se transformou para receber Mochila, uma peça contemporânea que, por estes dias, entre intensos ensaios, atenuou as ansiedades de uma companhia que, para já, está fora das contas do Programa de Apoio Sustentado 2018-2021 da Direção-Geral das Artes (DGArtes). Implementado este ano, desde o final da semana passada, quando foram conhecidos os apoios para o teatro, gerou uma onda de contestação que ontem ganhou corpo em protestos em diferentes cidades do País.
E enquanto os jovens ensaiavam em Matosinhos, alheios às movimentações políticas, secretário de Estado e ministro da Cultura eram chamados a São Bento para darem explicações "mais concretas e objetivas das situações que estavam em cima da mesa em termos de financiamento", clarificou no final desse dia Miguel Honrado. Essa conferência de imprensa do secretário de Estado da Cultura relevou-se insuficiente no controlo de danos que o Governo pretendia fazer face às falhas apontadas ao novo modelo de financiamento.
E na quinta-feira, às sete da manhã, numa medida inédita, António Costa publicou no portal do Governo uma "resposta aberta à cultura" em que anunciava mais um reforço de 2,2 milhões de euros para os apoios às artes, passando a dotar o concurso com 81,5 milhões de euros, num terceiro aumento anunciado desde 20 de março, quando a verba inicial do concurso era de 64,5 milhões de euros. Para as 15.00 estava marcado o debate quinzenal e BE e PCP, que sustentam a maioria do Governo liderado por Costa, já tinham feito saber que este seria um dos assuntos a abordar.
No caso do TEP, o reforço anunciado por António Costa - e que na Assembleia revelou beneficiar mais 43 estruturas que se juntaram às 140 já apoiadas - não aqueceu nem arrefeceu. A sua candidatura foi uma das que o júri do concurso considerou "não elegível". Mas a estreia de Mochilas aconteceu ontem à noite e o espetáculo continuará pelo fim de semana, ainda sem fumo branco governamental no que respeita ao recurso apresentado. Uma decisão que deverá apenas chegar no final de abril, depois de todos os recursos, que devem dar entrada até 13 de abril, serem apreciados pelo júri presidido por Cecília Branco e composto por Cristina Peres, Luís Mestre, Manuel Gama e Daniela Ambrósio.
Gonçalo Amorim, o diretor artístico, e todos os que o rodeiam estão "otimistas". "Nada está fechado e estamos confiantes. Obviamente que, depois de tudo estar concluído, iremos tirar as nossas conclusões, pois há cinco anos ficámos bem classificados e em cinco anos não estamos piores. Pelo contrário, estamos mais maduros, com uma equipa melhor, mais consistente", garante o responsável. Perto, Jorge Louraço sublinha que "não é só o TEP que acha que algo correu mal". "Há um atraso muito grande que não é de agora, que já vem de outros concursos, as companhias estão a trabalhar com coproduções ou protocolos. O próprio Estado reconheceu incapacidade e foi criada uma linha de crédito na Caixa Geral de Depósito. Há um semestre de todo um setor em standby e, quando chega o resultado do concurso, o programa pode já não ser o proposto e qualquer alteração tem que ser negociada", acrescenta o dramaturgo.
Insatisfação generalizada
As críticas chegam de todo o lado, fale-se com estruturas apoiadas ou com aquelas que perderam financiamento. Ou mesmo com a que maior verba recebeu, a Companhia de Teatro de Almada. A candidatura solicitava 1,6 milhões de euros e o montante atribuído foi de 1 247 999 euros. "A realização do Festival [de Teatro] de Almada está em risco", assegurou ao DN Rodrigo Francisco, explicando que este é "o maior corte desde sempre". "Nos últimos cinco anos recebemos 400 mil euros por ano, metade para a atividade da companhia e metade para a programação do festival. Com um corte de 90 mil euros por ano não vai ser possível avançar com o festival", diz o diretor artístico.
E nem o reforço anunciado na quinta-feira o deixa otimista: "Até ao fim deste mês, enquanto não houver uma posição oficial por parte da tutela, não podemos estar descansados. Este projeto, já é claro para todos, está a ser mal conduzido desde março, quando este regulamento foi anunciado e quando, pela primeira vez, fez depender da apreciação de um júri, por muito estimável que seja, os montantes a atribuir a estas companhias. É verdade que sempre existiram estes júris, mas a decisão dos montantes a atribuir era uma decisão política. Para isso é que os governos são eleitos, para decidir."
Tal como muitas outras companhias, também a de Almada vai contestar a decisão do júri. "Mas só haverá uma decisão final nos últimos dias de abril. E até lá, é com a maior apreensão que olhamos para tudo isto. O tempo vai passando, o festival é em julho, nesta altura temos a programação feita, os contratos celebrados com as companhias, mas não se pode estar à espera quase da véspera do festival para se comprar voos de avião, para se marcarem transportes, alojamentos. Todo este impasse já está a ter custos para nós".
Pedro Alves vai mais longe. "Temos é de começar a pensar em novos modelos, não de financiamento mas de relação entre o Estado e as estruturas, sejam profissionais ou amadoras, elegíveis para receber financiamentos, sejam as ditas históricas. Não tem lógica haver essa divisão entre companhias comerciais e companhias emergentes ou históricas. Geralmente essa divisão é feita quando nos convém a nós, "porque cumprimos um papel de serviços público". Pergunto eu: e o Filipe La Féria ou a UAU, ou outras produtoras da área da música ou do cinema, não cumprem também isso? Tem que se repensar, mas de maneira a incluir todos, porque todos servem diferentes públicos", defende o diretor artístico do Teatromosca que este ano se estreia nos apoios sustentados.
A atriz Cristina Carvalhal, também pela primeira vez com apoios sustentados da DGArtes através da estrutura Causas Comuns, aponta críticas ao modelo. Reconhecendo que o financiamento de 110 mil euros para 2018 e 2019 "permite-nos pensar mais a médio e longo prazo e ter uma continuidade que até aqui não era possível", concretiza alguns aspetos a mudar. "É claro que a antiguidade não é um posto mas as comissões de acompanhamento, que até estão previstas na lei, têm mesmo de existir e se perceberem que não há um bom trabalho por parte da entidade, têm que avisar e se calhar até prever sanções caso as coisas não melhorem. Como as coisas estão, e sempre estiverem, é um concurso e isso [a exclusão de companhias históricas] pode sempre acontecer", defende. Por outro lado, tal como Miguel Honrado já havia reconhecido na terça-feira, lembra que não se pode incluir no mesmo concurso programação e criação. A questão das estruturas municipais, geridas por associações, puderem concorrer em pé de igualdade com entidades sem esse apoio é outras das críticas que deixa.
Em Canas de Senhorim, vive-se "um misto de emoções". É aí que está sedeada a companhia Amarelo Silvestre que também se estreia nos apoios sustentados. "Ficamos tristes por vermos colegas que respeitamos que têm feito um trabalho importante ao longo dos anos, e agora ficam sem apoio. Por outro lado, reclamamos o nosso espaço", refere o diretor artístico desta companhia de teatro criada em 2009. "Para nós não seria escandaloso perder este concurso. Sempre trabalhámos com a precariedade no horizonte e isso não nos impedia de continuar a fazer o nosso trabalho. Antes de pedir qualquer tipo de apoio tínhamos de mostrar o que éramos capazes de fazer. E, neste momento, acho que é merecido. Já temos um histórico que nos permite achar que é perfeitamente legítimo ter este apoio. Sabemos que nos concursos alguém tem de ficar de fora. Quando ficam os grandes faz-se barulho, mas os pequenos também têm que ter o seu espaço. Devia haver uma diferenciação entre este patamar [em que está a Amarelo Silvestre] que é muito diferente do de companhias com um percurso já histórico. Não deixa de ser estranho ficarmos classificados à frente de companhias como os Primeiros Sintomas ou o Teatro Experimental do Porto", refere ainda.
No entanto, não é a primeira vez que o TEP vê fugir-lhe o tapete pois, ao longo de 65 anos de atividade já mudou várias vezes de casa e teve que se reinventar sempre que perde apoios. Laura Castro, a presidente da direção, recorda "o momento em que a companhia perdeu o espaço próprio e passou para Gaia, sem qualquer apoio do Estado, perdendo algum contacto com o público do Porto e alguma capacidade de afirmação na criação contemporânea". A renovação, segundo a própria, aconteceu em 2012, quando "a direção da altura convidou o Gonçalo": " O TEP tem naturalmente uma memória importantíssima, não só cultural e artística, mas também social e política, e o seu espólio espelha as mentalidades da época, mas isso, por si só, não aguenta uma companhia de teatro. Portanto, o Gonçalo Amorim foi responsável por colocar na esfera cultural o Teatro Experimental do Porto. E não o faz sozinho, fá-lo com um conjunto de pessoas de que se foi rodeando".
Necessidade de uma casa própria
Elogios à parte, o diretor artístico reconhece que "não é fácil fazer cultura no Porto. É mais valorizado o cidadão de Lisboa do que um do Norte, sendo complicado manter uma atividade cultural sustentada nesta região". E, entre os diversos reveses, Gonçalo recua até 1979 quando, fruto da crise, o TEP vendeu o Teatro António Pedro, perdendo o "ninho" para as suas produções: "Em 1981, muda-se para a Escola Académica , onde fez a sua sala-estúdio até 1994, altura em que um grande incêndio destruiu o teatro e o TEP começou uma peregrinação por vários espaços à procura de apoio. Voltou para o Sá da Bandeira, foi para a Casa das Artes, até que encontrou o seu poiso em Gaia onde esteve 14 anos, permitindo continuar a sua obra". Mas, "a certa altura, Gaia mudou a sua política cultural e achou que já não fazia sentido o TEP estar ali e cortou-nos o apoio. Isso coincidiu também com a mudança política no Porto que entendeu que deveríamos voltar à cidade. Ainda não está totalmente no Porto como gostaríamos, mas foi o primeiro passo para nos mantermos".
À parte orçamentos e questões monetárias, há todo o legado material que se foi somando, por isso também "é premente para o TEP encontrar um sítio para o seu espólio". Afinal, "o TEP passou por muitas fases, o que faz com que tenha um arquivo valiosíssimo, fotográfico, documental, uma quantidade enorme de obras de arte, um acervo de um valor patrimonial valioso, desde desenhos de figurinos a desenhos de cenografia, a quadros. Isto para não falar de figurinos históricos que temos guardados, a maior parte na nossa antiga sede em Vila Nova de Gaia", regista Gonçalo.
O presente divide-se "entre a sala de ensaios no Teatro do Campo Alegre que é também o centro de apresentações dos espetáculos do TEP, o Rivoli, e temos a Câmara Municipal do Porto e o Teatro Municipal do Porto a apoiar-nos com coproduções. Temos ainda, desde o ano passado, conseguido boas coproduções com o Teatro Municipal de Matosinhos, que é uma parceria nacional, assim como o Teatro Nacional de São João, o Teatro D. Maria II, só para dar alguns exemplos de que o TEP se vai sustentando também com estas parcerias".
Ter uma casa própria é importante. Mas só isso não chega. Que o diga o Teatro das Beiras, com auditório próprio, instalado numa antiga fábrica de lanifícios, que sem o apoio da DGArtes estava em risco. Esta é uma das 43 estruturas que com o reforço orçamental deverá passar a receber financiamento, tal como o Teatro Experimental de Cascais. Uma boa notícia para Fernando Sena. " Mas esta situação de virem os apoios a conta-gotas não resolve o problema de fundo: a própria fórmula concursal. Essa é que tem de ser alterada", defende o diretor artístico. "Vimos de um corte de 280 mil euros para 90 mil euros. Estes últimos cinco anos têm sido muito duros. Para sobreviver reduzimos as produções de quatro para duas e diminuímos a programação do Festival de Teatro da Covilhã". Na candidatura aos apoios do quadriénio 2018-2021 a companhia, fundada em 1974 e que se profissionalizou em 1994, propôs quatro novos espetáculos, a juntar aos cerca de 70 vistos por 260 mil espetadores ao longo dos 24 anos de atividade. "Tínhamos solicitado um apoio de 200 mil euros mas com a pontuação que temos, 68.25, o que dará cerca de 135/140 mil euros por ano. Algum destes espetáculos vai ter de sair", antecipa. Uma escolha que vai ser difícil: "É como se estivéssemos a cortar um dedo da mãozinha".
Sem dinheiro estatal, certo é que a produção não para. Na Covilhã está em cena O Mundo Mágico e em Matosinhos o Teatro Experimental do Porto tem em cena a sua Mochila, segunda produção de 2018. Depois do arranque anual na Invicta, a companhia mostra em Matosinhos que não tem medo de arriscar, lançando sete jovens do concelho numa "teia" narrativa que envolve não só atores como o público que se senta em pleno cenário. Longe dos fios que se hão de tecer na terça-feira, na Assembleia, com a audição do ministro da Cultura, e na quinta-feira, em São Bento, quando António Costa receber a comissão informal de artistas que têm contestado os critérios do concurso.