O outro processo de Minsk
Nos últimos três anos, perto de cem protestos emergiram com mais ou menos intensidade, maior ou menor duração, em dezenas de países da América do Sul e do Norte, em África, na Ásia e na Europa. Muitos deles foram motivados por má governação, corrupção ou arbitrariedade política (Brasil, Israel, Reino Unido, Iraque, Chile, Líbano, Bielorrússia), outros contra a violência policial ou o racismo (EUA, África do Sul, Quénia, Austrália, Alemanha), alguns ainda como reação à gestão da covid (Equador, EUA, Colômbia, Sérvia, Israel). Assim como 2016 iniciou oficialmente um inverno nacionalista em curso (ano do referendo do Brexit e da eleição de Trump), as democracias também souberam usar os seus mecanismos de sobressalto civil em defesa do Estado de direito e das liberdades. E mesmo em regimes plastificadamente democráticos, ou mesmo autoritários, vimos milhares nas ruas a pedir transparência eleitoral, respeito pelas minorias, pela separação de poderes ou pelo direito à autonomia das suas legítimas decisões políticas. Acompanhámos a luta em Hong Kong, nas ruas da América e, no último mês, na Bielorrússia, um país ao qual dificilmente algum português devotou um só minuto da sua atenção ao longo da vida.
Deixei passar propositadamente um mês desde que os maciços e pacíficos protestos eclodiram em Minsk para ver por onde caminhavam as dinâmicas internas, se colocavam os demais Estados com interesses locais, e até onde ia a atenção mediática. A leitura mais fácil faz-se mesmo sobre este ponto: durou o tempo habitual dos nossos ciclos de consumo informativo, típicos da oscilação entre a excitação inicial e o progressivo desinteresse sobre um qualquer outro assunto das chamadas "redes sociais", que de social têm cada vez menos. Assistimos com entusiasmo às correntes de pessoas a gritar por eleições livres, fim de uma ditadura europeia, contra a violência policial, mantivemo-nos focados por uns dias a ver como tudo isto evoluía e, não havendo alterações de maior, mudámos de tema, partindo para outra causa qualquer, equiparando a luta pela democracia com um outro assunto banal capaz de aquecer os ânimos e transformar tudo num ringue sem regras e respeito. É pena. A luta pela democracia, que damos como eterna e inviolável, não é uma relíquia dos meses seguintes à queda do Muro de Berlim, mas parte da vida de milhões de pessoas que passados 30 anos ainda não a alcançaram. Podia ser connosco, felizmente não é (embora ande por aí um saudosismo bafiento no ar), o que não significa que façamos de conta que nada nos diz.
As dores das lutas por democracia devem ser partilhadas pelas democracias que estão consolidadas, sob pena de vermos o cerco nacionalista prevalecer, ganhar terreno e reforçar a sua rede. Este devia ser um princípio base de uma discussão sobre apoio à democratização na Europa, mas, para que isso pudesse ter uma legitimidade reforçada e um alcance político vigoroso, seria preciso expurgar os anátemas que cresceram na última década dentro da UE e, ainda, ter completamente oleada uma rede de apoios financeiros e políticos à boa moeda que pela democracia luta e dá a vida.
O caso da Bielorrússia é particularmente interessante por não encerrar, ao contrário da revolução na Ucrânia em 2013-2014, uma dimensão geopolítica evidente, neste caso entre a integração no ocidente político ou o casamento com Moscovo. Em Minsk não é isto que está em cima da mesa, até porque as sondagens credíveis mais recentes dizem que 75% querem manter boas relações com a Rússia e que são mais os que defendem a integração naquela potência do que na União Europeia. Mesmo sendo indicadores pré-eleições presidenciais, o momento que motivou as manifestações em curso, não deixam de ilustrar uma realidade menos dicotómica do que a ucraniana. Além disso, a principal reivindicação popular é a repetição de eleições e a total verdade do processo, não uma súbita viragem estratégica para a Bielorrússia. No fundo, uma democratização dentro de uma autonomia decisional. É preciso aceitar isto e não forçar a UE com o refúgio único e súbito do espaço pós-soviético.
Ao preservar este espaço, a UE conseguiria o papel que nesta fase melhor lhe assenta: pressionar a repetição monitorizada de eleições, o respeito pelas reivindicações pacíficas nas ruas, o fim da arbitrariedade policial e do aparelho securitário interno (que ainda mantém o nome de KGB), a libertação dos presos políticos, e a possibilidade de se exercer um jornalismo livre. Em boa verdade, a UE é também corresponsável pela manutenção de Alexander Lukashenko no poder, que já tinha sido alvo de protestos em 2006 e em 2010, uma vez que permitiu a sua mediação no conflito ucraniano, aliviando-lhe as sanções. Só por isto, deve o bom senso ditar um roteiro faseado e não voluntarista para que o melhor dos cenários não seja rapidamente minado pelo Kremlin.
Esse cenário não passa, evidentemente, por forçar uma reação dura de Moscovo, apoiada em mais uma intervenção militar de média-alta intensidade, para a qual têm meios mas dificilmente aguentariam outra espargata financeira e política, depois das ambiciosas passadas na Ucrânia e na Síria. Este último mês também mostrou que Putin está cuidadosamente a acompanhar a situação para não cometer erros irrecuperáveis. Um dos pontos a merecer atenção reside na lógica descartável com que Moscovo olha para os seus aliados. Lukashenko é aceitável até garantir que a vantagem estratégica russa se mantém inalterada, caso contrário uma transição de poder pode rapidamente ser tolerável e outro cavalo atirado para a pista. Candidatos, aliás, não faltam, dado que o elemento antirrusso, ao contrário do caso ucraniano, não é elemento fundamental na definição da trincheira.
Nessa altura, com uma oposição mais estruturada e adicionada em experiência política (o que lhe falta agora), com garantias de segurança para regressar do exterior (sobretudo da Lituânia, anulando assim a acusação de "cabala externa"), e com as condições indispensáveis para se realizarem novas eleições presidenciais (de preferência antes das locais marcadas para 2022), fica desenhado um roteiro aceitável, que não extrema os campos nem incendeia os interesses da vizinhança. Depois disto e acreditando que a atual farsa eleitoral possa ser transformada numa vitória da oposição, a UE pode começar um diálogo com Minsk mais apurado, legitimado e inteligente. Putin, se puxar pela astúcia, verá que esta é a solução que mais lhe convém: é barata, não derrama sangue e preserva a esfera de influência russa. Será que burro velho ainda aprende línguas?
Investigador universitário