O outro golpe
O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), fundado no princípio do século por dissidentes do Partido dos Trabalhadores (PT) desiludidos com a realpolitik dos governos Lula e com o escândalo do mensalão, defende a legalização das drogas, a interrupção voluntária da gravidez, a população LGBT, o feminismo, as agendas indígena e afro-brasileira e a laicidade, entre outras causas normalmente conotadas com a esquerda - ou a extrema-esquerda.
Estão por isso nos antípodas dos cristãos evangélicos, que se reúnem politicamente na ultraconservadora Bancada da Bíblia, uma frente suprapartidária do Congresso Nacional onde é normal encontrar defensores da pena de morte para traficantes de drogas, da prisão para mulheres que abortem ou da "cura gay".
E, no entanto, existe Henrique Vieira, 30 anos, pastor evangélico da Igreja Batista do Caminho e quadro do PSOL. Diz Vieira, provável candidato pelo partido a deputado estadual no Rio de Janeiro nas próximas eleições, que nem todos os evangélicos cabem no estereótipo dos poderosos tele-evangelistas, como Silas Malafaia ou Valdomiro Santiago, dois patrocinadores da Bancada da Bíblia que destilam ódio e preconceito dos seus púlpitos. "Dá para ser evangélico e progressista", garante.
Dá, claro, mas um pastor evangélico do PSOL, com todo o respeito, não deixa de soar um bocadinho "antinatural" como se dizia naquele anúncio português do século passado ao restaurador Olex do negro de cabeleira loira e do branco de carapinha.
É mais ou menos como a página de Facebook Sou Feminista e Apoio Bolsonaro: como é que Jair Bolsonaro, que já disse num talk show que pagaria salário inferior a uma mulher porque ela pode engravidar e que em plena sessão do Parlamento respondeu à deputada do PT Maria do Rosário que só não a estuprava porque ela não merecia - "é muito feia, não faz o meu género"-, tem feministas do seu lado? Mas tem, são pelo menos 19 mil na tal página.
Segundo elas, o militar na reserva é quem mais as defende, na prática, por ter proposto castração química a violadores e por, enquanto acérrimo apoiante do uso de armas, sugerir, à la Trump, que cada brasileira transporte uma pistola consigo.
Pode uma feminista aprovar o discurso de extrema-direita bolsonarista? Pode, claro, mas, lá está, remete-nos ao restaurador Olex: não é natural.
As feministas pro-Bolsonaro e o evangélico pro-PSOL, no entanto, não são nada de tão esquisito assim, se comparados com o que se leu em entrevista recente de Lula da Silva, antigo presidente, líder da esquerda e padrinho político de Dilma Rousseff, ao jornal Folha de S. Paulo. Para ele, houve golpe - até aqui nada de extraordinário mas espere até ao fim da frase - contra... Michel Temer. Golpe contra Temer, sim.
Segundo Lula, no ano passado, quando foi gravado pelo empresário Joesley Batista a pedir para manter o esquema de pagamento de mensalidades ao ex-aliado e hoje detido Eduardo Cunha, o presidente da República foi vítima de um golpe de estado perpetrado pela Globo. E porque é que a Globo - o influente grupo de comunicação é considerado conservador e de direita - queria derrubar Temer? Para colocar no seu lugar Rodrigo Maia, o jovem presidente da Câmara dos Deputados. "Temer prestou-se a fazer o serviço do golpe mas não era uma figura palatável", justificou Lula.
Noutro ponto da conversa, quando sugere que o juiz Sergio Moro está ao serviço dos americanos, a quem interessava derrubar a Petrobras, Lula afirma que não acredita em teorias da conspiração. "Mas também não desacredito..."
Um pastor evangélico do PSOL, feministas pro-Bolsonaro e Lula a defender que houve golpe contra Temer. Na política de todos os países há paradoxos, contradições, insólitos - mas no Brasil, onde Romário, conhecido enquanto futebolista por faltar aos treinos sempre que podia e não podia, é um dos senadores mais assíduos de Brasília, e Tiririca, palhaço de profissão, um dos deputados mais sérios do Congresso, mais ainda.