O olhar de quem viveu e estudou a Revolução dos Cravos

São historiadores, cientistas políticos, académicos que se têm dedicado ao estudo de um dos acontecimentos mais marcantes (e seguramente o mais celebrado) do século XX português. Nos 48 anos do 25 de Abril, seis olhares sobre o que se sabe da revolução e as zonas de sombra que a historiografia ainda não iluminou.
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Todos viveram os dias da Revolução dos Cravos. E acabaram, anos mais tarde, a investigar e a analisar, como diz Adelino Maltez, uma das "mais potentes reinvenções dos nossos nove séculos de História".

Albérico Afonso, ligado à LCI (Liga Comunista Internacionalista), estava "clandestino, tinha fugido por causa da guerra colonial" e a "planear ir para França"; António Costa Pinto participava numa a reunião do Movimento Associativo dos Estudantes do Ensino Secundário de Lisboa, ligado à União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas); Fernando Rosas, que já sabia o que era estar preso por duas vezes, andava "na clandestinidade" pelos arredores de Lisboa em "casas de apoio" do MRPP; Irene Flunser Pimentel, sem saber o que aí vinha, só saiu de casa na manhã do dia 26, direta para o Largo do Chiado, a "levitar". José Adelino Maltez estava em Coimbra, a "fazer o exame escrito de Medicina Legal na Faculdade de Direito" e ficou "eufórico" quando se tornou claro o que se passava; Silvestre Lacerda, à data com 16 anos, recebeu a notícia por uma fonte bem colocada: o irmão era um dos operacionais que estava na ocupação da RTP.

"O Tempo Histórico e a História do 25 de Abril", uma organização conjunta DN/JN/TSF com a Câmara Municipal de Setúbal, integrado na iniciativa Venham Mais Vinte Cincos, juntou-os na passada semana para um debate sobre o passado e o futuro. O DN esteve à conversa com os seis, num retrato multifacetado da Revolução, no dia em que passam 48 anos sobre o 25 de Abril.

Existe mesmo um quase vazio sobre a história do 25 de Abril no poder local, nos 308 concelhos?

É verdade, há um enorme vazio. É uma das áreas em que há um maior défice na investigação histórica. Até há pouco tempo, a história local era completamente evacuada da Academia, era, imagine-se, desaconselhada investigação nessas áreas. A Academia tem tido, ao longo destes anos, um certo desprezo, diria, em relação ao estudo da dimensão local.

Cria-se outro vazio, a ausência de conhecimento local do que é ensinado nas escolas?

Em termos das memórias, da memória local que é muito importante, os professores nas escolas, por exemplo, estão muito sozinhos. É preciso que a investigação histórica dê elementos, dê recursos para a história que é ensinada na escola. A única maneira é haver um esforço de investigação, de conhecimento da história local. São pouquíssimos os locais em que há investigação.

Conseguimos perceber o alcance do que estamos a perder?

Muito, muito, estamos a perder muito. Deu há pouco esse número, o dos 308 concelhos. Só essa imagem permite perceber da grandeza do que poderíamos, deveríamos perceber. E até porque muitos dos protagonistas, que estiveram envolvidos no que se passou nesse tempo, estão a desaparecer. Seria importante que as novas gerações de historiadores dessem uma atenção muito especial à investigação da história local.

Setúbal, imagino, até por causa das suas investigações, parece ser uma exceção...

Felizmente, em Setúbal há fontes muito diversificadas que permitem a perceção da história.

Há uma multiplicidade de aspetos muitíssimo importantes. Não os consigo resumir nesta conversa, mas desde a manifestação das betoneiras [14 de junho de 1975] em que os homens da construção civil se concentraram aqui à volta da câmara, na Praça do Bocage, como se fossem chaimites...

[a conversa é interrompida. Irene Pimentel está de saída do debate e vem despedir-se. Albérico procura ajuda sobre as sedes da PIDE em Setúbal. Por minutos a conversa entre os dois é sobre essa "procura". São sempre precisos documentos, "a memória oral, que é muito importante, não é suficiente para um historiador"]

... há um aspeto muito pouco conhecido, por exemplo, a relação entre o poder local, aqui em Setúbal, e a Igreja Católica. Apesar de não ter havido uma questão religiosa como a que aconteceu na I República: este edifício em que estamos ardeu no dia 4 de outubro, arderam conventos, portanto uma questão religiosa muito forte, apesar de não ter havido isso, houve uma conflitualidade muito significativa, nomeadamente quando é instaurada a diocese de Setúbal, em 1975. Há aspetos muito curiosos. D. Manuel Martins, por exemplo, quando veio para cá foi muito contestado, houve manifestações [risos]. A história tem destas ironias, ele acabou por ser o Bispo Vermelho. Há dezenas e dezenas de episódios que estão muito ligados à história nacional. Setúbal foi palco de alguns dos acontecimentos - o 12 de março de 1975, o 7 de março, por exemplo - que tiveram influência na história nacional. Isto para além dos protagonistas como é o caso do Zeca Afonso.

Pelo que percebo, sem a história dos acontecimentos locais, temos uma história do 25 de Abril com demasiadas brechas?

Sim, sim, sim... para utilizar uma linguagem militar, dado que o golpe foi militar, há uma história ferida por estilhaços.

No Setúbal, Cidade Vermelha [livro que escreveu sobre os anos de 1974 e 1975] isso percebe-se?

A história é sempre construída pela memória, que tem naturalmente, os afetos e desafetos da altura, e pela documentação recolhida, analisada.

Albérico Afonso é licenciado em História, mestre em História dos Séculos XIX-XX e doutorado em História Cultural e das Mentalidades Contemporâneas. Atualmente é professor coordenador no Instituto Politécnico de Setúbal, investigador integrado no Instituto de História Contemporânea da FCSH-UNL e membro da Network for Studies on Corporatism and the Organized Interests (NETCOR). Nasceu em Portel, a 26 de setembro de 1951, e vive em Setúbal desde 1976.


Ainda nos falta saber muito sobre o 25 de Abril?

Não, mas é natural que os historiadores do contemporâneo privilegiem e sejam uma espécie de cultores da memória das áreas em que trabalham. No caso do 25 de Abril, há um ponto central: é que a democracia portuguesa, efetivamente, legitima-se no 25 de Abril, ritualiza o 25 de Abril, e, portanto, os portugueses têm uma imagem positiva sobre o 25 de Abril.

Isso tem alguma consequência?

Tem, faz com que exista hoje na sociedade portuguesa, mesmo nas gerações mais novas, uma procura social sobre o que foi a transição portuguesa para a portuguesa.

Uma procura histórica, uma procura sobre a história daqueles tempos?

Histórica, sim. Mas, repare, não é que tomem posição. É conhecimento, saber sobre. Quando nós olhamos para o que é que a sociedade contemporânea portuguesa sabe sobre a sua história, basicamente há três períodos que emergem: os chamados descobrimentos, o salazarismo e Salazar que continua ser uma figura bem conhecida dos portugueses e o 25 de Abril e a transição democrática.

Mas apesar de dizer que já sabemos o essencial histórico, porque mantém dúvidas sobre esse tempo da revolução?

Essas dúvidas que tenho, que em síntese são três, é porque muitas vezes a memória que nós temos sobre o 25 de Abril poderá ser, eventualmente, alterada se nós soubermos mais. E quando digo mais falo de saber mais sobre as condicionantes internacionais do 25 de Abril; o apoio à formação dos partidos democráticos; o papel dos Estados Unidos, por exemplo, até inclusivamente na contenção da extrema-direita durante o processo revolucionário.

E sobre o 25 de novembro...

Se soubermos melhor que, no fundo, esse momento, o 25 de novembro, não foi, ao contrário da memória oficial do centro-direita e até da memória do passado do Partido Socialista, uma tentativa do Partido Comunista Português tomar o poder, mas foi, isso sim, um processo bem mais complexo onde a Esquerda radical teve um papel central e que foi um processo de crise do Estado, se nós soubermos mais, isto, evidentemente, devolve à sociedade portuguesa uma imagem diferente da memória oficial, daquela memória que foi cultivada durante muitos anos.

Onde está a diferença?

O 25 de novembro foi feito, é importante sublinhar, pelas forças democráticas moderadas. O 25 de novembro não representou nem representa uma vitória da direita radical nem uma restauração de memória do que poderíamos chamar de memória mais positiva do salazarismo. O 25 de novembro não foi uma tentativa do PCP para tomar o poder, isso não é verdade.

Apesar das dúvidas, não partilha da ideia de que ainda sabemos pouco?

Não, não partilho. O mundo académico sabe hoje o essencial sobre o 25 de Abril e temos que confessar que a sociedade portuguesa também o sabe graças à ritualização da memória, graças ao facto de todos os anos existirem comemorações, existir material fílmico, existir uma devolução muito significativa à sociedade portuguesa do que foi o 25 de Abril.

É uma perceção sua?

É o que nos dizem os estudos sobre esta matéria, não é a minha opinião. O que é verdade é que para 80% da sociedade portuguesa, o 25 de Abril é histórico, é passado. Quando se vê as ocupações de terras no Alentejo, a dinâmica de saneamentos, a entrada da polícia política para a cadeia, tudo isso é um outro mundo.

Foi em Florença, em 1992, no Instituto Universitário Europeu, que se doutorou. Agregado pelo ISCTE, em 1999, é atualmente investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Professor Convidado no ISCTE, Lisboa. Foi professor convidado na Universidade de Stanford (1993) e Georgetown (2004), e investigador visitante na Universidade de Princeton (1996) e na Universidade da Califórnia- Berkeley (2000 e 2010). Nasceu em Lisboa em 1953.


Porque razão considera este 25 de Abril e os que nos aproximam dos 50 anos os mais importantes de todos?

Este é o primeiro 25 de Abril que é formalmente contestado como ato legitimo da democracia. Pela primeira vez na vida política portuguesa há um partido em particular, de extrema-direita, representado na Assembleia da República que põe em causa o 25 de Abril, como ato libertador, em nome da defesa do 24 de abril e da ditadura. Nesse sentido, é a primeira vez que o 25 de Abril não decorre sob uma espécie de aparente consenso, que era um consenso um bocado feito de modorra, de ninguém querer chatear ninguém. 0 25 de abril vai, provavelmente, beneficiar de uma polémica que é bem-vinda.

Bem-vinda?

Sim, porque permite reafirmar os valores do 25 de Abril e denunciar as posições subversivas e anti-constitucionais do Chega como partido político. Nesse sentido essa disputa é boa. É uma disputa modernizadora do nosso pensamento político, é uma disputa reedificadora do 25 de Abril. E, portanto, ela que venha.

É também, por isso, que reforça a ideia de que o 25 de Abril tem cor?

Não apenas, mas é preciso lembrar que o 25 de Abril não foi, como parecem querer dizer, uma coisa neutra que politicamente não tinha cor. Teve cor, e tem, e valores. O 25 de Abril foi feito contra a direita, contra a ditadura, contra a ditadura fascista, contra o regime colonial, contra a guerra colonial, contra a repressão. Se hoje em dia há quem, no parlamento, defenda o 24 de abril e a ditadura não posso deixar de dizer que o 25 de Abril tem cor. E não é nem da direita e muito menos da extrema-direita. É um 25 de Abril de valores.

Esteve no antes do 25 de Abril, no durante e no depois sempre como protagonista político . O que é que falta cumprir desses ideais da revolução?

As revoluções são assim, fazem-se, avançam, contêm-se, recuam, chegam a acordos... é um processo. A revolução portuguesa foi desencadeada por um movimento militar que por virtude da dinâmica social originou uma mudança muito substancial na sociedade portuguesa, a todos os níveis. Mas esse processo depois travado por uma espécie de contra-golpe militar que fazendo, no entanto, a economia de uma contra-revolução - porque uma contra-revolução é sangue, é prisões em massa, é proibição de partidos, etc - originou uma espécie de contenção, aliás programada na revolução, que se vai traduzir nas instituições que nos regem atualmente. Ou seja, na Constituição de 1976 e nos órgãos democráticos criados...

Porém?

Agora, mesmo depois disso, a democracia perdeu muito das coisas que conquistou. Não se perdeu o aspeto político essencial da Revolução que é a democracia política, mas perdeu-se muito das conquistas sociais e económicas da Revolução. A disputa por esse legado económico-social da revolução é ainda hoje o que divide a Esquerda e a Direita, em Portugal. E essa luta vai agravar-se com os efeitos desta gravíssima situação internacional - o Covid, a seguir a guerra na Ucrânia - com um governo que se propõe aplicar uma política, outra vez, com aspetos austeritários; desvalorizando o salário real, bloqueando os aumentos na função pública e outros setores, etc e etc.

É um caldo político que pode levar a extremismos? É isso que quer dizer?

Vai pôr outra vez na ordem do dia aquilo que são as questões [do 25 de Abril] que ficaram por resolver. Nada nos diz que o agravamento da situação, que aliás é expectável, não possa trazer novas lutas.

Como se fosse um novo 25 de Abril, uma nova revolução?

Digo isto porque a revolução é um processo sempre inacabado, sempre em construção.

Professor catedrático, historiador, político, é autor de uma dezena de obras, desde 1985, sobre o Estado Novo. Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar foi prémio P.E.N. Clube Português de Ensaio em 2012. Foi do PCP de 1961 a 1968, fundador do MRPP, várias vezes candidato a deputado pelo PSR, fundador do Bloco de Esquerda, em 1999, partido pelo qual foi eleito deputado por três vezes e candidato a Presidente da República em 2001. Nasceu em Lisboa a 18 de abril de 1946.

Passadas quase cinco décadas ainda há muito por contar sobre o 25 de Abril?

Sobre o 25 de Abril propriamente dito talvez já não haja muito para descobrir. Será mais pelas contradições entre as várias figuras do 25 de Abril, do Movimento das Forças Armadas - em que havia opções diferentes - entre o MFA e os spinolistas... Mas é já mais um trabalho de história oral. Não houve um processo que tivesse sido delineado na véspera do 25 de Abril e depois avançou por ali fora. Não, a própria história e a dinâmica do 25 de Abril foi depois mais longe, até à clarificação do 25 de novembro. Sendo que o 25 de Novembro também é uma parte dessa giesta, desse caminho da nossa democracia.

O 25 de Abril ultrapassou os seus protagonistas?

Absolutamente. Até porque havia muitas motivações, houve várias opções políticas logo de início. A própria dinâmica do movimento foi-se encarregando de resolver a questão. O 25 de Abril é o golpe de Estado naquele dia, no dia seguinte já as coisas eram outras. E depois houve uma aceleração da História. Quando pensamos no que se passou de 25 de Abril de 1974 até 25 de Abril de 1975, quando há as primeiras eleições, há um processo parlamentar muito rápido, é absolutamente extraordinário. Muitas vezes tenho que ir ver as datas: como é que é possível? De repente a História em Portugal não só submergiu a realidade como acelerou de uma forma incrível. Durante um curto espaço de tempo: ficamos estarrecidos com tudo o que se passou nesse ano.

Como é que explica isso?

É como se a panela de pressão se tivesse aberto. Tudo se misturou, todos os interesses, todas as expectativas das pessoas - que eram diferentes em muitos casos - fizeram com que entrássemos num processo revolucionário. O 25 de Abril não era uma revolução, era um golpe de Estado. E, de facto, havia muitas sensibilidades diferentes no seio do próprio 25 de Abril.

Já sobre o 25 de Novembro defende que está muito por estudar...

Há muita coisa que já se sabe. Agora, os vários protagonistas e as várias vontades - o que é que eles próprios queriam - naquele dia é que está por dissecar.

A memória do 25 de Novembro está a ser alvo de uma disputa política, atualmente?

Sim. De uma certa forma, o 25 de Novembro é a disputa de uma democracia parlamentar. Podia ter ido para outro lado, aquilo que se passou no 25 de Novembro podia ter dado outras coisas. De certa forma, houve vários 25 de abris e vários 25 de novembros. Havia muitas intenções e sensibilidades.

Está por fazer a história dos derrotados?

Sim e isso é muito interessante. Primeiro, os derrotados do próprio 25 de Abril. De uma certa forma o 25 de Abril conjugou quase toda a gente, depois as várias opções políticas foram-se digladiando, tomando mais força ou menos força.

Mas não é sempre assim? A história não acaba sempre por esquecer os derrotados?

Mas aí há a história e a historiografia, que pode ver as diferentes sensibilidades e dar as razões, as explicações das várias sensibilidades. Isso é a historiografia. A história tem dinâmicas próprias.

Estudou a participação feminina no Estado Novo. E no 25 de Abril, onde é que estavam as mulheres? São quase invisíveis.

Isso tem a ver com uma sociedade muito machista e pelo facto de o golpe de Estado ter sido feito por militares...

Mas as mulheres não estiveram no 25 de Abril?

As mulheres estiveram lá sempre, estiveram em todas as barricadas, e muito nas reivindicações que apresentaram depois de anos e anos em que não tinham direitos nenhuns. Mas muito desse trabalho está por fazer: a importância das mulheres no 25 de Abril, na reforma agrária, na política, enquanto deputadas. Foi uma data fundamental para as mulheres.

Licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Irene Flunser Pimentel é mestre em História Contemporânea e doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora do Instituto de História Contemporânea, tem uma extensa obra publicada, caso da História das Organizações Femininas do Estado Novo ou A História da PIDE. Recebeu o Prémio Pessoa em 2007.

A história do 25 de Abril na sua relação com a direita não está contada? O que é que falta?

Falta tomar outra atitude, dizer que o 25 de Abril não foi sufragado por uma só fação, foi sufragado por toda a sociedade portuguesa. Há uma certa desvalorização de um conceito de direita. Mas quem é que disse que a direita era o 24 de Abril? Isso é uma operação de guerra psicológica: a direita não é o 24 de Abril. De outra maneira como é que temos a Constituição, o nascimento da democracia pós revolucionária em 1976 e, três anos depois, a direita ganha as eleições? Então o país que deu maioria absoluta à direita não estava com Abril? Claro que estava e isso tem sido desdenhado numa narrativa forçada da história. Há aqui uma teimosia em pintar o 25 de Abril como uma revolução, mas foi sobretudo uma pós-revolução.

Porquê uma pós-revolução?

Quem é que pode negar que o soarismo e o cavaquismo são Abril? É impossível negar que a história foi alterada a partir das experiências de alternância entre soarismo e cavaquismo. Esses é que foram os verdadeiros filhos de Abril.

Há alguma direita que ainda convive mal com o 25 de Abril?

Alguma direita e alguma esquerda. Abril foi "temos que nos aturar uns aos outros". Recordo uma intervenção, que achei luminosa, de Maria Antónia Palla, mãe de António Costa, resistente, antifascista, de esquerda, que disse que só conseguiu ter amigos de direita e conversar com eles depois do 25 de Abril. A democracia é um diálogo com o adversário. Enquanto eu considerar o adversário como inimigo, não há democracia. A coisa mais bonita desses anos iniciais do abrilismo foi acabar com os inimigos e passar a ter adversários, de quem me tornei amigo. E isso medido através de processos honestos de medição da vontade popular pelo voto. Os anos quentes do PREC o que é que foram? Depois das eleições de 25 de Abril de 1975 o poder político instalado - que era um poder político-militar controleiro -, esse poder demorou uns meses, até à emergência dos moderados do MFA [Movimento das Forças Armadas], a reconhecer os resultados eleitorais. Consideraram que as eleições, as mais concorridas e livres da nossa história de séculos, não traduziam (e não traduziram) a vontade revolucionária. O processo do 25 de Abril demorou uns tempos e concretizou-se, não foi com o 25 de Novembro, foi a 25 de Abril de 1975.

Acha que existe, nesta altura, uma disputa em torno do que foi o 25 de Novembro?

Não tem comparação possível [com o 25 de Abril]. Aquilo foi chamar a costureira para tapar um rasgão. O 25 de Abril tinha uma promessa que não estava a ser cumprida e foi precisa uma certa martelada, no 25 de Novembro, para cumprir Abril. Mas os dois acontecimentos não podem ser, de maneira nenhuma, equivalentes.

Para que é que deveriam servir as comemorações do cinquentenário do 25 de Abril?

Os regimes precisam de festa. É um ato de congratulação pela refundação de um novo Portugal: o facto de entrarmos numa fase pós imperial, com a integração europeia, com adesão às democracias pluralistas, foi feito com a procura de um outro patriotismo. Esse reforço da identidade nacional foi feito depois de Abril. São poucos os momentos da história de Portugal equivalentes, foi um dos grandes momentos de reinvenção, como foi 1385, 1640 ou 1820.

Não incluo aqui as alterações republicanas, que são uma continuidade da revolução liberal, nem a correção financeira do 28 de maio. São datas secundárias face a estes momentos.

Adelino Maltez nasceu em Coimbra em 1951, a mesma cidade onde se licenciou em Direito em 1974. Após o 25 de Abril trabalhou como adjunto em vários governos. Doutorado em Ciências Sociais, na especialidade de Ciência Política, pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, é professor catedrático da mesma instituição. Além das obras editadas na área da ciência, filosofia e história política, e também de Direito, é ainda autor de cinco livros de poesia.


Defende que ainda há investigação por fazer e que há uma história que pode ser feita pelos próprios cidadãos. Há documentação acessível?

Há documentação acessível, que pode ser consultada por qualquer cidadão. Por exemplo, no caso da polícia política, nós temos cerca de cinco milhões de fichas de recolha de informação sobre os cidadãos portugueses. E as pessoas a única coisa que têm que fazer é enviar um mail, ou ir à Torre do Tombo, e pedir para consultar o processo individual. Qualquer pessoa o pode fazer, não precisa de nenhuma credencial em especial, só precisa do Cartão do Cidadão.

É responsável pelo arquivo nacional da Torre do Tombo. Que documentação há, disponível, relacionada com o 25 de Abril?

Nós temos dez quilómetros de documentos, o arquivo da PIDE, o arquivo António de Oliveira Salazar, do ministério do interior, o arquivo do SNI [Secretariado Nacional de Informação]. São sobretudo arquivos anteriores ao 25 de Abril. A seguir ao 25 de Abril já temos documentação do Conselho da Revolução, da Alta Autoridade Contra a Corrupção e começamos a ter alguns arquivos privados de personalidades que estiveram envolvidas diretamente no 25 de Abril: o arquivo Melo Antunes, em que temos o manuscrito do programa do Movimento das Forças Armadas - é todo o programa do MFA manuscrito num caderno de apontamentos. No caso do arquivo Costa Braz temos algumas atas do Conselho de Ministros - era ministro do Interior e o responsável pela organização das eleições. Portanto ,existe já um conjunto de documentos específicos, posteriores ao 25 de Abril, embora a maior parte ainda esteja nas administrações, nos vários ministérios, na secretaria-geral da presidência do Conselho de Ministros...

E há algum plano para juntar essa documentação num único acervo?

Não é fácil. Neste momento estamos a estudar uma possibilidade, que é a criação de um arquivo geral da administração central do Estado. Mas é um processo, as coisas estão muito dispersas. A Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas vai discutir essa questão, agora, com o novo ministro. É uma das questões que temos em cima da mesa.

A documentação de que falou está na Torre do Tombo ou dispersa por outros arquivos?

Estamos a falar sobretudo da Torre do Tombo, mas depois temos documentação nos arquivos distritais. Por exemplo está em depósito, porque ainda está na posse da secretaria-geral do ministério da Administração Interna, os arquivos dos governos civis. Temos outra coisa, que às vezes as pessoas não dão muita importância, que são os arquivos notariais, testamentos, a posse de propriedade. São aspetos da vida quotidiana que recebemos, e que estão disponíveis.

E há algum esforço, sistemático, de conseguir arquivos privados que possam ter relevância histórica?

É uma linha de trabalho que temos, relativamente quer a arquivos contemporâneos, quer mais antigos. A Torre do Tombo tem cem quilómetros de documentos, desde o século IX até à atualidade. São milhões e milhões de documentos. Nós temos, neste momento, 63 milhões de imagens disponíveis na net, que podem ser descarregadas gratuitamente, mas isso corresponde a cerca de 0,1% do arquivo nacional.

Em relação ao 25 de Abril, há muita documentação ainda por trabalhar?

Sim, sobretudo do ponto de vista da história local, das particularidades e dinâmicas que se foram desenvolvendo por todo o país.

Ou seja, no futuro não vamos propriamente descobrir documentos que alterem a visão do 25 de Abril, mas há muito trabalho complementar que ainda pode ser feito?

Sim, acho que o 25 de Abril é um assunto resolvido. Mas há outros olhares que podem ajudar a complementar aquilo que vamos sabendo, sobretudo na história local.

Diretor-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, Silvestre Lacerda nasceu a 19 de março de 1958. É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com um curso de especialização em Ciências Documentais. Técnico superior no Arquivo Distrital do Porto, passou pelo Centro Português de Fotografia e, em 2005, assumiu as funções de diretor-geral do arquivo nacional da Torre do Tombo. De 2012 a 2015 foi subdiretor da Direção-Geral que agora lidera.

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