O olhar de quem trata o cancro em tempos de covid-19

O testemunho de dois médicos, Maria Gomes da Silva e José Passos Coelho, sobre como é tratar doentes oncológicos com mais uma ameaça, a da pandemia da covid-19.
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Dois médicos contam ao DN como é estar do outro lado a proteger os seus doentes, já com diagnósticos graves, da pandemia que invadiu o mundo e o país quase há um ano. Maria Gomes da Silva, diretora do serviço de hematologia do IPO de Lisboa, que viveu um surto de covid na sua unidade, confessa que muita coisa mudou: "Tornámo-nos obsessivos no controlo da infeção." José Passos Coelho, diretor do Departamento de Oncologia do Grupo Luz Saúde nunca viveu esta situação de surto, mas confessa: "Antes, o que nos dava dores de cabeça eram as bactérias, não contávamos que viesse uma segunda gripe espanhola com o impacto que está a ter na oncologia."

Primeiro, sentiram medo. Um medo pelos doentes. Depois, reagiram. Em menos de 24 horas testaram todos os doentes internados, os doentes que pudessem estar potencialmente infetados, por contactos próximos e todos os profissionais do serviço, para terem a noção da dimensão do surto de covid-19 que tinham de enfrentar. "Foi um susto", admite Maria Gomes da Silva, diretora do serviço de hematologia do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, onde ocorreu um surto de covid-19, em junho passado - o segundo em unidades oncológicas; o primeiro foi detetado no bloco operatório do IPO do Porto.

Sete meses passados, Maria Gomes da Silva diz ao DN que espera que a pandemia não mude para sempre o acompanhamento aos doentes oncológicos. "Para sempre, espero que não. Acho que veio mudar temporariamente esse acompanhamento, mas veio ensinar-nos que podemos beneficiar com algum dos ensinamentos que adquirimos e mostrar-nos uma onda de solidariedade entre profissionais e instituições que espero que perdure." No fundo, espera que "possamos continuar a usar as nossas terapêuticas mais eficazes e sem medo".

E medo foi o que sentiram na segunda semana de junho, mais precisamente no dia 15, quando, durante um processo de testagem aleatório, detetaram um doente internado infetado. "A primeira sensação foi de medo pelos doentes. E a primeira reação foi a de começar a testar em massa para percebermos a dimensão do surto, avisar a administração do IPO e pedir ajuda a todos os serviços do hospital", confessa, explicando: "Conseguimos confinar todos os profissionais positivos e identificar os seus contactos de alto risco dentro da instituição."

Só no seu serviço, o surto atingiu três médicos, sete enfermeiros e cinco assistentes operacionais, "um número muito elevado, porque todos eles tinham contactado com muitas outras pessoas não só dentro do seu grupo profissional, mas de outros também". Ou seja, "foram profissionais que levaram atrás de si para isolamento profilático muitos colegas. Cheguei a ter dez médicos em isolamento, os cinco que ficaram trabalhavam as horas necessárias para fazer tudo o que havia a fazer. Durante duas semanas, funcionámos só com uma secretária, num serviço onde habitualmente estão quatro. Ficámos sem assistente social, sem nutricionista e outros profissionais de apoio, que não estavam infetadas mas tiveram de ficar em isolamento". Valeu-lhes "a solidariedade fantástica dos serviços do hospital, que nos disponibilizaram enfermarias, camas e profissionais para nos mantermos a funcionar", mas também de "todas as outras instituições que receberam os doentes com covid-19 e que os trataram, já que, para preservar a capacidade de atender os doentes oncológicos, os IPO não tratam doentes covid".

Ao fim de três dias, e depois do processo de testagem em massa e da análise de todos os doentes infetados, andando 14 dias para trás, perceberam a dimensão do surto: 24 doentes, alguns já tinham tido alta. O foco não o conseguiram identificar, mas acreditam que nem todas estas pessoas tenham sido infetadas em ambiente de trabalho.

Uma situação como esta não voltou a acontecer. A partir daqui, muita coisa mudou, desde a geografia do serviço à prática clínica e ao comportamento de cada um. Em primeiro lugar, "aprendemos em 24 horas que quando se deteta uma situação destas - e conseguimos detetá-la porque temos um programa de testagem regular que inclui profissionais e doentes, sobretudo os que estão internados - a infeção está provavelmente disseminada".

E explica: "Os doentes hematológicos são um grupo muito mais suscetível do que outros doentes com cancro. São doentes que dependem muito do hospital, que têm internamentos prolongados em enfermaria, não temos quartos individuais. A sua doença e os tratamentos deixam-nos com uma condição imunológica muito frágil, o que contribui para essa maior suscetibilidade e, obviamente, para um maior risco de disseminação da doença. Quando se deteta um doente ou um profissional é porque provavelmente à volta já há outros infetados mesmo que não tenhamos dado por isso."

A primeira mudança foi "o tornarmo-nos muito obsessivos com a implementação do controlo de infeção. Mudámos a geografia da nossa enfermaria de forma a termos os equipamentos de proteção individual junto à porta de cada sala, zonas limpas separadas das zonas sujas, com a geografia desenhada no chão para ninguém se baralhar".

Depois, organizaram o serviço: "Tínhamos uma enfermaria com uma lotação de 31 camas que foi reduzida em cinco, para permitir ter uma sala de contenção de doentes." Ou seja, "nunca mais tivemos um doente que tivesse feito um teste há três dias e que depois fosse internado sem passar por esta sala de contenção, onde ficam de máscara, cortinas corridas e afastados uns dos outros até termos a relativa segurança de que não estão infetados". Toda a equipa passou a lidar com todos os doentes como se fossem positivos - e a comportar-se também como tal", "fizemos ações de formação intensiva junto a todos os grupos profissionais sobre as medidas de controlo de infeção".

Mas fizeram algo mais: "Enfatizámos a importância dos comportamentos fora do serviço. Não basta que as pessoas tenham imensas precauções aqui dentro se depois forem todas juntas na sua hora de pausa tomar um café ou fumar um cigarro. Isso é um risco." E esse ensinamento considera que conseguiram passar. Arranjaram ainda duas salas de pausa, onde vigora proibição estrita de permanecerem mais de três pessoas e durante mais de 15 minutos. Como diz, "todos nós aprendemos muito nesta fase. Aprendemos, implementámos e mantemos".

Se a situação teve impacto na equipa, Maria Gomes da Silva reconhece que teve impacto maior nos doentes e em quem está à volta deles. "Sabíamos que era importante comunicar a situação a cada doente infetado, a cada doente que era um potencial contacto e aos seus familiares. Foi o que fizemos." Hoje, diz, "ainda há o medo pelos doentes, dentro e fora do hospital, não da infeção em si, mas da doença, dos sintomas que se podem vir a desenvolver e do impacto que podem ter nos tratamentos da doença hemato-oncológica, mas todos os cenários, todos os riscos, foram e são conversados com muita calma com cada um dos doentes".

Na esmagadora maioria, os doentes reagiram positivamente às orientações da equipa que os tratava. E uma das razões, diz a médica, tem que ver com a relação de proximidade que um doente hematológico desenvolve com quem trata dele. "São doentes muito dependentes do hospital e criam uma grande ligação aos médicos, aos enfermeiros, aos assistentes operacionais. Aliás, este é um dos riscos, tanta proximidade, por vezes, faz que se distraiam e se esqueçam de coisas óbvias, como usar máscara ou não estar em cima uns dos outros." Maria Gomes da Silva afirma que, dos seis a sete mil doentes que tratam no serviço, há hoje "muito mais de uma centena que já estiveram infetados. Infetaram-se na comunidade, não aqui, mas fazemos um registo de todos os que nos vão dizendo que estiveram doentes, para se retirar a informação que nos é útil e planear a nossa própria atitude face aos doentes".

A pandemia trouxe uma marca às doenças oncológicas: como tratar um doente infetado? A experiência adquirida tem ditado que cada caso é um caso. "Há doentes a quem pudemos protelar o tratamento sem problema, outros a quem tivemos de tomar a decisão de os tratar mesmo infetados, senão perdíamo-los. É muito difícil prever quem vai ou não desenvolver formas graves da covid-19. Temos doentes mais idosos e com comorbilidades que passaram pela doença quase sem darem por ela, e outros mais novos em que infelizmente não foi assim."

No Dia Mundial contra o Cancro, a médica do IPO diz que a sua primeira mensagem é de otimismo -"embora Portugal esteja a viver uma fase particularmente dramática" - que remete para a palavra mágica: vacinas. "São a nossa melhor aposta. Podem não ser 100% eficazes, mas evitarão as formas graves da doença." Por um lado, nesta altura, "há um acumular de conhecimentos que não existia há um ano ou há seis meses, que nos ajuda a lidar melhor com os riscos, com as terapêuticas na área da oncologia". A segunda mensagem é de "confinamento, precaução, isolamento, por muito que nos custe a todos. A vida de muitos dos nossos doentes pode depender disso."

Assim que se começou a perceber a dimensão que a pandemia de covid-19 estava a ter em Itália e em Espanha, José Passos Coelho, diretor do departamento de oncologia do Grupo Luz Saúde, assume ao DN que na sua equipa cresceram duas grandes preocupações que tiveram de resolver rapidamente. Uma era como poderiam proteger os doentes do risco de contraírem a doença, outra era como poderiam proteger os próprios profissionais.

No início, não se sabia como é que a doença poderia afetar os doentes oncológicos, mas a nossa preocupação com estes doentes é que eles já têm maior sensibilidade imunitária para contraírem infeções, sobretudo quando estão a fazer tratamentos. Portanto, tínhamos de arranjar uma solução que os protegesse e lhes desse tranquilidade, mas que, por outro lado, fosse também uma solução que protegesse os profissionais que deles cuidavam - já que havia o perigo de os profissionais poderem ser transmissores da doença ou de ficarem doentes e o departamento ficar sem capacidade para prestar os cuidados de saúde necessários."


Duas preocupações que levaram este grupo privado a optar por uma solução radical: separar os doentes oncológicos dos outros doentes, o que levou à mudança do departamento do Hospital da Luz, em Lisboa, para a unidade de Oeiras, que ficou exclusivamente com estes doentes. "Foi tudo decidido muito rapidamente e, em dois dias, de quinta a sábado, mudámos os doentes todos, processos, organizámos equipas médicas, de enfermagem e dos outros profissionais, em espelho para a eventualidade de, se alguém apanhasse a doença, haver um grupo que não tivesse estado exposto e que pudesse continuar a funcionar", explica ao DN.


A decisão, explica, surgiu também na sequência de o Ministério da Saúde ter solicitado ao grupo que se preparasse para poder avançar na resposta à covid-19, e "a maneira como nos preparámos foi deixar o hospital de Lisboa para os doentes covid e passar toda a oncologia para Oeiras, para haver um afastamento físico dos circuitos".


A situação "permitiu-nos continuar a tratar os doentes diminuindo os riscos de exposição e dando-lhes maior segurança e tranquilidade". José Passos Coelho diz hoje com satisfação que foram transferidos cerca de cem doentes a quem, e cumprindo as normas de proteção ditadas pela DGS, foi feito um estudo serológico e "não detetámos um único que tivesse sido infetado ou em quem tivéssemos tomado a decisão errada de avançar com o tratamento oncológico".


Até hoje, e já de regresso à casa-mãe assim que se percebeu que a pandemia estava abrandar, nunca "registámos um surto", sublinha. "As consultas continuam a ser feitas, os tratamentos também, mas temos regras muito específicas e uma triagem ao doente que é feita na véspera."


Mas José Passos Coelho não pode negar que uma das grandes preocupações neste momento é o atraso que tem vindo a notar na referenciação de novos doentes, devido à falta de diagnósticos, e a chegada de doentes que negligenciaram os rastreios de rotina e que chegam já com situações clínicas em estado avançado. "Temos a noção de que há atrasos nos diagnósticos, o que pode levar a atrasos no tratamento. O que é um problema, além da pandemia, porque não tratar um doente que possa precisar de um tratamento urgente, seja curativo ou paliativo, não pode ser uma opção em cima da mesa."

E refere: "Temos doentes que negligenciaram os rastreios de rotina, que deveriam ter feito numa parte do ano e que só no final apareceram para os fazer, já com situações clínicas mais avançadas."
O médico conta que os argumentos dos doentes eram comuns à maioria: "Ou porque não tinham tido a oportunidade de ter acesso aos cuidados ou porque eles próprios tinham receio." A questão, como diz, é que "a maioria destes doentes não tem escrito no rosto: "Tenho cancro". E há alguns que nos chegaram com situações mais agravadas".


Para Passos Coelho esta é uma das consequências da pandemia na oncologia. Como profissional, sabe que "a comunidade clínica e médica está a dar tudo para responder a esta explosão nacional da pandemia, mas temos de tentar que isso afete o menos possível o tratamento das doenças oncológicas. Temos de continuar a tratar e a rastrear os nossos doentes", diz, sublinhando: "A doença oncológica é uma doença que pode ser fatal quando tratada tardiamente ou curável quando tratada atempadamente."

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