O olavismo tomou conta da cultura no Brasil. Mas o que é o olavismo?

Olavo de Carvalho, que se gaba de ter tirado os direitistas brasileiros do armário, passou desde esta semana a dominar, através de ex-alunos seus, a área cultural do governo de Bolsonaro, outro dos seus discípulos.
Publicado a
Atualizado a

"O rock leva ao aborto e ao satanismo", "os Beatles implantaram o comunismo", "agentes soviéticos infiltrados na CIA distribuíram LSD em Woodstock para destruir a célula familiar" e "a UNESCO propaga a pedofilia", diz o maestro Dante Mantovani, novo presidente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), organismo vinculado à Secretaria de Estado da Cultura do governo de Jair Bolsonaro.

"Livros didáticos estão cheios de músicas de Caetano Veloso, Gabriel O Pensador, Legião Urbana, depois não sabem por que está todo o mundo analfabeto", afirma o escolhido, nesta semana, para liderar a Biblioteca Nacional. Rafael Silva apresenta-se como professor de Filosofia, História, Teoria Política e Literatura, aspirante a filósofo e a polímata.

"Marielle Franco jamais será heroína legítima dos negros brasileiros, exceto para os "esquerdopatas", os que estão nas biqueiras [local de venda de drogas] e nos presídios", "Martinho da Vila é um vagabundo que deveria ser mandado para o Congo" e "a escravidão foi benéfica para os descendentes", acha o jornalista Sérgio Camargo, que, se uma suspensão da sua nomeação não prosperar nos tribunais, vai presidir a Fundação Palmares, cujo objetivo é o reforço das manifestações afro-brasileiras.

Foram ainda nomeados um colunista social, conhecido por Tutuca, para a tarefa de gerir os recursos do Fundo Setorial do Audiovisual; uma reverenda, Jane Silva, para secretária da diversidade cultural; uma auxiliar do deputado Eduardo Bolsonaro na organização da recente Cúpula Conservadora das Américas, Katiane Gouvêa, para a Secretaria do Audiovisual; e uma escritora de telenovelas da evangélica TV Record, Letícia Dornelles, protegida pelo deputado pastor Marco Feliciano, para cuidar da Fundação da Casa Rui Barbosa, maior acervo cultural do país.

O responsável por estas e outras escolhas é o dramaturgo Roberto Alvim, o secretário de Estado da Cultura elogiadíssimo por Jair Bolsonaro que em setembro chamou Fernanda Montenegro de "sórdida" e de "mentirosa" por ter sugerido, através de um ensaio fotográfico, haver uma caça às bruxas no Brasil.

Ao serem tornadas públicas as ideias destes novos membros do governo, uma pergunta, entretanto, passou a ecoar na comunicação social e nas redes sociais do Brasil e do mundo: afinal, de onde é que Bolsonaro tira esta gente? Pois bem, essa pergunta tem uma resposta objetiva: da sala de aulas do professor Olavo de Carvalho.

Guru do bolsonarismo

Olavo de Carvalho, emigrado desde o início da década passada nos Estados Unidos, "como reação à loucura de eleger o PT", proclama-se "o parteiro da nova direita do Brasil", da qual o presidente da República é hoje, por força do cargo, o vértice. Dos subúrbios de Richmond, capital da Virgínia, o autor dos best-sellers O Imbecil Coletivo e Tudo o Que Você Precisa Saber para não Ser Um Idiota usa publicações nas redes sociais, transmissões no YouTube, um site, um portal e um podcast para influenciar a "nova direita", da qual se intitula "o parteiro".

"Eu ajudei os direitistas a sair do armário", gabou-se em entrevista de dezembro de 2016 à BBC, edição Brasil. Em outubro de 2018, um perfil do pensador no DN destacava que Olavo é um fumador inveterado, com queda para o abuso de palavrões, e um colecionador apaixonado de armas - tem dezenas de revólveres expostos no escritório e mais de 30 espingardas espalhadas num quarto de brinquedos -, com ódio assumido ao PT e ao comunismo, sendo, aliás, um dos responsáveis por parte de a direita brasileira não dissociar um do outro.

Nos seus cursos online de filosofia, em que participaram a maioria dos nomes indicados para a Cultura, mas também os três filhos do presidente, o senador Flávio, o vereador Carlos e o deputado Eduardo, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e colaboradores e parlamentares próximos do Planalto, ensina-se que o nazismo é de esquerda.

Relativizam-se os malefícios da tortura na ditadura militar brasileira, considera-se a Inquisição uma ficção dos protestantes, duvida-se da teoria da evolução de Darwin, ouve-se que não há provas de que a Terra não seja plana, especula-se que foi Theodor Adorno, expoente da Escola de Frankfurt, o autor das letras dos Beatles.

Segundo entrevista à revista Época, para Olavo existem cerca de 200 grupos económicos interessados em dominar o mundo. A ideia do "globalismo", iniciada no século XIX e desenvolvida por intelectuais contratados pela família Rockefeller, serve-se da eliminação de automóveis com motoristas e de dinheiro em papel para controlar, numa fonte central, os horários, os itinerários e as transações financeiras de toda a gente, defende o filósofo.

Ainda de acordo com os traços gerais do seu raciocínio, é para dissolver as células de poder que poderiam resistir a esse projeto, as famílias, que entra em ação a esquerda: ela ocupa, como determinou o teorizador marxista Antonio Gramsci, os espaços culturais, onde pretende esvaziar de significado as tradições judaico-cristãs e banalizar práticas como a zoofilia, o canibalismo e a pedofilia.

Daí, ser tão importante para o olavismo político começar por encher de olavistas a Secretaria de Estado da Cultura.
Como Jair Bolsonaro e os seus filhos, o secretário de Estado Roberto Alvim, que mudou de vida depois de encontrar Jesus Cristo e Olavo, é um desses olavistas assumidos. "Tive um tumor no intestino, era benigno, mas causou-me uma série de problemas, nessa altura era ateu, como qualquer intelectual, mas a babá do meu filho, evangélica, fez-me uma oração, eu senti uma luz, fui ao hospital no dia seguinte e o tumor tinha desaparecido, foi um milagre", contou ao jornal Gazeta do Povo.

"Tive uma série de epifanias, iluminações, tornei-me cristão convicto e mergulhei de cabeça nos escritos do professor Olavo de Carvalho", conclui.

Guerra ganha

Para a ascensão de Alvim, e por consequência dos seus recentemente nomeados colaboradores cujas frases vão espantando o Brasil e o mundo, contribuiu o facto de Olavo e os olavistas passarem a gozar de mais poder e de mais liberdade de ação do que nunca no heterogéneo governo Bolsonaro. Até outubro, a outra ala do executivo, chamada de "pragmática", composta pelos militares e pela equipa económica, servia de contrapeso ao núcleo do filósofo, dos filhos do presidente e dos outros seus alunos, conhecido por "programático" - os detratores chamam-no de "núcleo psiquiátrico".

A guerra entre as alas ou os núcleos chegou a ser sangrenta, algures em abril. "Só de aguentar esses filhos da puta [os militares do governo] que há em volta dele [Bolsonaro]... Não dá, não dá", queixava-se Olavo em vídeo nas redes sociais.

"Acho que ele deve limitar-se à função que desempenha bem, que é a de astrólogo", respondia o general Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro, ironizando uma das atividades anteriores do guru presidencial - além de astrólogo, nos anos 1970, Olavo foi também membro do Partido Comunista e íntimo de José Dirceu, o braço direito de Lula no primeiro governo do PT; nos anos 1980, envolveu-se com a tariqa, ordem mística muçulmana; e, nos anos 1990, foi um celebrado polemista em colunas em jornais, antes de se dedicar, finalmente, à filosofia online.

Foi a crise no Partido Social Liberal, rastilho para a debandada de Bolsonaro e dos seus mais fiéis do "núcleo programático" para o novíssimo Aliança pelo Brasil, que colocou Olavo numa posição dominante, sem amarras e vencendo, ao que tudo indica, a batalha aos cada vez mais discretos e esvaziados "pragmáticos". A criação de um partido, onde os mais resilientes defensores de Bolsonaro se entrincheirassem, foi aliás ideia do próprio filósofo.

Dominante e sem amarras, portanto, Olavo passou a controlar a área cultural, onde se deu nesta semana um expurgo sem precedentes de secretários ligados aos governos anteriores, substituídos pelos personagens descritos acima. Porque, recorde-se, de acordo com o guru, é lá, na Cultura, que a esquerda, contra a família, exerce o seu domínio, conforme determinado pelo marxista Gramsci.

A família, entretanto, pode ser a perdição do fanático olavista Alvim na secretaria de Estado: está a ser investigado pelo Ministério Público por ter violado a lei de licitações ao tentar contratar a empresa Flo Produções e Entretenimentos para gerir um orçamento de 3,5 milhões de reais (perto de 800 mil euros), no âmbito da Funarte. A dona dessa empresa é a atriz Juliana Galdino, sua mulher.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt