O oceano precisa de palavras, mas também de atos
Esta semana, grande parte dos portugueses terá ouvido falar pela primeira vez do Painel dos Oceanos, com o seu manifesto a fazer notícia um pouco por todo o mundo. Os líderes deste Painel comprometeram-se a gerir de forma sustentável a totalidade das suas Zonas Económicas Exclusivas (ou o oceano sob a sua jurisdição) até 2025.
Os 14 governantes, onde se inclui o nosso primeiro-ministro, classificam a sua abordagem como "ambiciosa e prática" e reconhecem que "falhar colocará em risco a saúde global, o bem-estar, a vitalidade económica e exacerbar desigualdades".
CitaçãocitacaoTem Portugal assumido um papel de destaque na defesa destes objetivos a nível nacional, na UE e na comunidade internacional? A resposta é pouco animadora.
Vários dos objetivos expressos no manifesto agora publicado vão ao encontro de muitos pedidos das Organizações Não Governamentais de conservação marinha nos últimos anos: aumentar o controlo das atividades no mar, banir os subsídios à pesca prejudiciais ao ambiente, descarbonizar o transporte marítimo, explorar todas as alternativas disponíveis à mineração em mar profundo, classificar 30% do oceano como áreas protegidas, promover standards para maximizar a redução, reutilização e reciclagem de embalagens modo a alcançar uma economia circular, entre muitos outros.
A pergunta que se coloca é: tem Portugal assumido um papel de destaque na defesa destes objetivos a nível nacional, na UE e na comunidade internacional? A resposta é pouco animadora: em muitos deles, claramente não.
Tomemos como exemplo uma peça de legislação recente e de iniciativa nacional. Foi colocada a consulta pública no mês de novembro a legislação que estabelece o Regime Geral da Gestão de Resíduos. Em dois rápidos e pouco transparentes momentos de alterações ao texto, Portugal passou de uma versão muito progressista para outra em que delega no sector económico que produz, embala e comercializa os descartáveis, o poder de autorregulação na definição das metas de gestão relativas às embalagens reutilizáveis. Importa dizer que este sector é um reconhecido opositor às medidas para prevenção de resíduos, como a utilização de embalagens reutilizáveis. Tudo isto ao mesmo tempo que o Governo se compromete, no manifesto agora publicado, a "incentivar o desenvolvimento, produção e uso de alternativas viáveis ao plástico e a começar a eliminação de plásticos problemáticos e desnecessários".
Noutra área da conservação marinha, veja-se o exemplo das negociações do Fundo Europeu dos Assuntos Marítimos, Pescas e Aquacultura que decorreram entre quinta e sexta-feira. A posição que Portugal assumiu apoia, mais uma vez e contra todas as evidências científicas, a manutenção de alguns subsídios prejudiciais, isto é, aqueles que, por definição, aumentam a capacidade das embarcações e promovem a sobrepesca, algo que a UE se comprometeu a acabar em 2020. Isto assume especial relevância quando, para cumprir todos os acordos de alto nível que têm sido assinados pelos Estados-Membros, o documento agora assinado fica manifestamente aquém. Também não surpreendentemente, é extraordinariamente difícil para qualquer parte interessada não envolvida saber quais foram as posições concretas de cada estado, o que agrava a desconfiança, distanciamento e desinteresse com que os cidadãos veem genericamente as decisões tomadas em Bruxelas.
Sobre a mineração em mar profundo, o panorama apresenta-se um pouco mais cinzento. Em julho deste ano, o Governo colocou a consulta a legislação que regulamentará a Lei de bases do regime jurídico da revelação e do aproveitamento dos recursos geológicos para os depósitos minerais. Por outras palavras, a extração e aproveitamento mineiro em Portugal, incluindo o mar profundo. Apenas um mês depois, é tornada pública a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2020-2030, onde a mineração em mar profundo aparece como um dos vetores da recuperação económica para a próxima década. Vale a pena dizer que esta atividade se encontra fracamente regulamentada, tem impactos maioritariamente desconhecidos em ecossistemas frágeis e pode produzir efeitos que poderão durar centenas ou milhares de anos, uma janela temporal que ultrapassa em muito quaisquer benefícios que dali possam ser retirados.
Vale igualmente a pena mencionar que esta atividade com fins comerciais ainda não se iniciou em nenhum lugar do mundo e que não estão ainda de forma alguma exploradas todas as hipóteses de reciclagem, reaproveitamento e recuperação de minérios que reduzam a necessidade de novos materiais. Dar início a esta atividade iria contra todas as formulações conhecidas do princípio precaucionário e legitimaria a perpetuação de uma lógica de economia linear, por oposição à muito necessária economia circular.
Não é logicamente a primeira vez que nos deparamos com uma diferença considerável entre as declarações de alto nível de governantes nacionais e as suas posições sobre medidas concretas que permitiriam implementá-las na prática. Será que desta vez assistiremos a uma efetiva ligação entre os objetivos gerais e as medidas na prática?
Aplaudimos entusiasticamente as intenções dos governantes que integram o Painel dos Oceanos. Afinal, estes representam cerca de 40% das linhas de costa do mundo, 30% das ZEE e tal acarreta um poder de influência que pode efetivamente impulsionar uma mudança real no resto do mundo.
Mas inscrever nestes acordos objetivos ambiciosos e mobilizar outros governantes um pouco por todo o mundo é apenas o (muito essencial) primeiro passo. O segundo deverá passar por detalhar medidas concretas dentro de cada objetivo e em que fora e escala temporal devem ser implementados. Por fim, e não menos importante, urge tornar verdadeiramente transparentes todas as discussões e posições assumidas pelo Governo, publicando de forma simples, acessível e rastreável o histórico de decisões e tomadas de posição.
Portugal é um dos 14 países integrantes deste fórum, um dos dois representantes da Europa e o único da UE. Adicionalmente, acolheremos no próximo ano a Conferência da ONU sobre os Oceanos e presidiremos ao Conselho da UE no primeiro semestre de 2021. É justo, por isso, dizer que todos os olhares estarão colocados em nós e que Portugal tem uma oportunidade inigualável para se posicionar na linha da frente da proteção dos oceanos, acrescendo ainda a responsabilidade de ter uma relação cultural e tradicional com o mar como poucos estados. Por todas estas razões, dificilmente o momento poderia ser mais indicado para o nosso Governo se destacar na arena internacional e assumir por fim este papel, inspirando os outros países a seguir-lhe as pisadas. A crise da biodiversidade e da crise climática afiguram-se mais reais do que nunca e é obrigação dos nossos governantes lutarem para que as gerações futuras herdem um planeta melhor do que encontramos hoje.
Coordenadores da Associação Sciaena - Oceanos # Conservação # Sensibilização