A curiosidade e o mistério que o espaço sempre suscitou mantêm-se no presente, nas ambições e nos sonhos que se projetam para o futuro. É o que se nota quando o professor Rui M. Rocha fala sobre os seus alunos e o que estão a criar: o primeiro satélite totalmente desenvolvido em Portugal. É o "espírito inquisitivo" do homem que leva a querer abrir novas fronteiras no espaço, diz. Depois do PoSAT-1, lançado há mais de duas décadas, trabalha-se no ISTsat-1, mas querem fazer muito mais..Lidera o grupo que está a desenvolver o primeiro satélite inteiramente português, o ISTsat-1. Com o aproximar da data de lançamento, em 2020, já se sente o nervosismo? Claro que há nervosismo. Passámos por uma série de etapas, desde que entrámos neste programa da Agência Espacial Europeia [ESA], o Fly Your Satelite, em 2017. Foi um concurso aberto às universidades dos estados Membros da ESA. Concorreram 13. Fizeram duas seleções e ficaram seis universidades, entre as quais o Instituto Superior Técnico [IST]. O espírito do projeto é essencialmente educativo, mas academia que se preze tem ensino e depois há avaliação. E esta avaliação é feita num conjunto de etapas em que a ESA requer que sejam cumpridas determinadas metas. E, obviamente, à medida que nos vamos aproximando dessas metas, o nervosismo aumenta..Já em janeiro vão existir testes cruciais. Em que fase estamos do projeto? Numa fase avançada. Todos os sistemas já estão desenvolvidos e estamos agora em testes funcionais. Há um exame no início de janeiro, em que um representante da ESA vem a Portugal e irá avaliar se o satélite cumpre ou não as especificações definidas na fase de projeto..Isso acarreta ansiedade... Sim, bastante. Já fomos fazendo testes, porque o satélite, e isso é importante de frisar, é todo desenvolvido, projetado e construído por nós, à exceção de três componentes: as células da bateria, os painéis solares e a antena de comunicações, responsável pela telemetria e o telecomando do satélite que tem o mecanismo de instalação no espaço..É um teste crucial? Sim. Esse é o ponto em que temos o ticket to test. Depois dos testes funcionais de janeiro, teremos um período, logo a seguir, em que vamos ter vários elementos da equipa na ESA. Se passar neste teste funcional, o satélite pode entrar imediatamente no programa de segunda fase de testes. Neste ambient test, que é o que está acontecer, o satélite é testado em condições terrestres, de pressão e de temperatura. Segue-se o environmental test na ESA. Aí será submetido a condições extremas, que simulam as condições de voo e de lançamento, vibrações, ciclos térmicos, vácuo para simular um pouco as condições reais a que vai ser submetido. Ou seja, as condições de espaço. Se passarmos a primeira avaliação, faremos então esses testes que nos darão o ticket para o lançamento..O satélite está pronto? Estamos sempre dependentes da avaliação do oficial da ESA, mas já temos alguns testes feitos. Por exemplo, às baterias. Fomos um bocado teimosos e quisemos fazer o módulo de baterias, que tem aqui uma dificuldade suplementar. Como o satélite é para ser lançado da Estação Espacial Internacional [EEI], que é uma nave tripulada, há restrições adicionais. É como levar baterias a bordo de um avião. Há critérios muito apertados..No laboratório da ESA, o satélite vai ser todo testado? Exatamente. Em relação às baterias estamos mais do que confiantes porque já passámos por esse teste. O resto dos módulos já não é bem assim. Fizemos um teste ao rádio também, não em vácuo mas na ANACOM, que nos está a ajudar bastante. É um patrocínio de apoio, porque têm laboratórios muito bem equipados em Barcarena. Fizemos lá uns testes na câmara climática para perceber como era o funcionamento do rádio ao longo de uma gama vasta de temperaturas desde mais 30 graus a menos 30 graus. E portou-se bem. E fizemos um teste, na mesma ANACOM, com o satélite todo, de compatibilidade eletromagnética. Passou com distinção..Quais as expectativas para janeiro? São boas. Neste momento, o que está em grande ebulição é o software. Temos aqui um sistema com três ou quatro computadores, só neste quadradinho. Estamos otimistas, mas nervosos..Para quando está previsto o lançamento? Se não houver atrasos, será na segunda metade de 2020, seguramente depois do verão..Como será feito? Quem é responsável pelo lançamento é a própria ESA. Essa é a grande vantagem, não temos de pagar o lançamento. O satélite é entregue à ESA, que depois o entrega à empresa com a qual têm o contrato de lançamento e então o satélite é metido numa nave que irá para o espaço num dos abastecimentos regulares da EEI. É entregue aos astronautas, que carregam os satélites num braço robótico para ser lançado em órbita..Vai estar quanto tempo no espaço? De seis meses a um ano, pois é um satélite de órbita baixa e com massa pequena..Está a ser todo construído em Portugal? Totalmente no IST..É um ponto de partida para outros voos que estão a idealizar? Já estamos a pensar fazer um satélite um bocado maior. Este é um satélite de um U, uma unidade, o formato é estandardizado. Um U equivale a um cubo de 10 cm de aresta, portanto 10 por 10. O próximo satélite será um 3 U, é um paralelepípedo de 30 cm por 10..Qual é a ambição para esse projeto? Temos duas missões pensadas, uma delas tem que ver com o controlo da poluição. A outra está no segredo dos Deuses, é uma missão essencialmente científica, na área da física. Este que estamos a fazer só tem uma missão, mas o próximo vai ter uma missão primária e outra secundária. A secundária será o controlo da poluição. É ao nível marítimo, tem que ver com uma monitorização dos oceanos. Será um satélite três vezes maior do que este..Qual é a missão do ISTsat-1? Depois de lançado, o satélite vai ser apontado para a Terra porque vai captar os sinais dos aviões. A missão é testar um recetor de sinais dos aviões, chamado sistema ADS-B, um recetor compacto, de baixo custo e consumo, para detetar os sinais que são emitidos dos aviões. Estes sinais vão ser obrigatórios a partir de 2020. Quem veja, por exemplo, o site flightradar24, todos aqueles posicionamentos dos aviões são obtidos através de sinais que os próprios aviões enviam, sinais deste tipo, ADS-B, e que são recebidos em estações terrestres e não por satélites. Estas estações terrestres enviam esses dados para servidores que registam depois em base de dados e com isso é possível, por exemplo, ir buscar esses valores. O que acontece é que quem vê este website verifica que há uma grande concentração de aviões nas zonas de terra, mas depois nas zonas remotas, nos oceanos, não existe qualquer informação, ou se existe é pouca..Com satélites isso deixará de acontecer? Exatamente. Um desaparecimento de um avião numa zona remota fica completamente invisível às estações terrestres, como aconteceu com o avião da Malaysia Airlines e com o avião da Air France que desapareceu quando vinha do Brasil. Ficam fora de cobertura. Como estão em zonas muito isoladas, não há cobertura a partir de terra e deixam de ser vistos. E do espaço é possível detetá-los com satélites..Não é com um satélite que isso será possível, mas com uma constelação de satélites. Sim, especialmente quando queremos localizar os aviões em tempo real. Este satélite não é feito para essa constelação, é feito para testar este tipo de recetor, que se funcionar poderá ser usado em satélites de órbita baixa como este, mas já numa constelação..Quais são as características deste satélite? Tem uma massa de cerca de um quilograma, um volume à volta de um litro, é quase um cubo de cerca de 10 cm de aresta e que transporta um conjunto de subsistemas..Apesar de ser um satélite pequeno, é complexo? As pessoas não se deixem enganar pelo tamanho. O tamanho engana. Aliás, devo dizer que quanto mais pequeno mais difícil é. Quanto mais pequeno, menos área de painel solar [que reveste o satélite] há, portanto menor é o consumo de energia que os outros módulos do satélite têm de ter porque não há tanta energia disponível. Tem de ser tudo muito mais controlado..Qual é a área do professor? É a eletrónica digital, a parte dos processadores. No fundo, a minha especialização é em sistemas embebidos, sistemas computacionais em tempo real..E quais são as outras valências envolvidas no desenvolvimento do ISTSat- 1? Depois há as áreas de comunicações, energia, antenas e controlo, porque o satélite é um sistema controlado, tem de apontar para a superfície da Terra e tudo isso envolve um controlo de atitude do satélite. Há ainda outra área que é a da mecânica orbital, com o nosso especialista, o professor Paulo Gil..Os alunos são de vários cursos? Sim, curiosamente. Temos alunos de Engenharia Aeroespacial, Eletrónica, de Redes..Sente que poderá estar a fazer história com este projeto? Isso não me preocupa muito. O que me preocupa é dar uma boa formação aos alunos. Talvez os meus alunos façam história. O meu maior interesse é formar um grupo de gente que não tenha medo de arriscar e de fazer..E de sonhar alto? Sim, porque não? Vamos lá ver, o país está a fazer um esforço grande para apostar nesta área do espaço. O nosso ministro da Ciência afirmou que a partir de 2020 e no final do triénio a contribuição de Portugal para a ESA vai aumentar para a ordem dos cem milhões. Neste momento a participação do país na ESA é relativamente modesta, mas tem aumentado..Porque é que, desde sempre, o espaço suscita tanta curiosidade? No fundo, é o espírito inquisitivo do homem. Começamos por alargar as nossas fronteiras em terra e depois exploramos o mar. Aliás, fomos pioneiros nessa matéria..É como explorar os mares? É este espírito aventureiro, de descoberta..Qual a diferença entre o ISTsat-1, que se está a fazer agora, e o PoSAT-1, o primeiro satélite português a ser lançado no espaço? O professor Carvalho Rodrigues teve uma iniciativa de, no fundo, catalisar o interesse do país a vários níveis, da academia, da indústria. O lançamento do PoSAT-1 foi um marco nesse aspeto. Não foi desenvolvido no país, foi algo que teve parcial participação portuguesa, foi desenvolvido sobretudo em Surrey, Inglaterra. O objetivo era despertar o país e catalisar a nossa indústria para a importância de desenvolver coisas para o espaço..E conseguiu? Houve algum desenvolvimento da indústria ligada ao espaço e destas empresas que surgiram recentemente, mas acho que isso não foi bem conseguido. Penso que houve uma fraca resposta, também houve outros tipos de condicionalismo..Financeiros? Sim, obviamente. Estávamos numa altura de expansão, mas depois houve contração. Agora estamos numa fase diferente..Já não é tanto chamar a atenção do país? É desenvolver competências ao nível universitário, ao nível de um instituto como o IST, uma escola de engenharia das mais importantes do país, mas também que isto possa estar ligado àquilo que o próprio ambiente empresarial tem vindo a desenvolver. Há muitas empresas que já têm muitos negócios com a ESA. Segundo os números que li, quanto à capacidade de produção, temos intervenção em variadíssimos projetos nesta área do espaço, na ordem dos 40 a 50 milhões de euros por ano..Usando as suas palavras, sente-se um "marinheiro" na exploração do espaço? Diria que estamos a contribuir para que haja um maior interesse nesta área, uma maior participação portuguesa, maior qualidade na formação dos nossos alunos, não só a nível do espaço mas de engenharia na globalidade. Tenho a certeza de que quem passa por estes projetos são melhores engenheiros..Quais os valores que este projeto acarreta? Eu diria à volta dos 500 mil euros, incluindo lançamento. Um lançamento anda à volta de uns 200 mil euros..Que parcerias estabeleceram e que apoios receberam? Esse é um dos aspetos mais negativos. Todo este custo tem sido feito com a prata da casa, financiamento do IST e dos institutos que estão ligados ao Técnico, nomeadamente o Instituto de Telecomunicações e o Instituto de Engenharia de Sistemas e de Computadores, o INESC-ID, que na prática pagaram o desenvolvimento destes vários subsistemas. São, de facto, os verdadeiros heróis. Sem esse apoio não teríamos conseguido montar este projeto. Depois temos os apoios não financeiros, mas igualmente de grande valor, como o caso da ANACOM e do Instituto Português da Qualidade, que nos ajudam em determinados tipos de serviços. A ESA o que faz é pagar as viagens dos alunos e a estada. Suportam os custos dos testes, o lançamento..Neste processo, o que é que tem sido mais complicado? Fiquei um bocado desiludido com este satélite pelo apoio que tivemos do tecido empresarial em Portugal. Porque recorremos a várias empresas para nos ajudarem nos custos de desenvolvimento e não tivemos grande acolhimento. Do ponto de vista de auxílio em género não nos podemos queixar, temos um bom suporte das empresas que eu já mencionei. Agora, por exemplo, grandes empresas que têm às vezes milhões para gastar no futebol e não têm trocos para apostar num projeto destes. E lamento profundamente que isto aconteça..O que gostava de ver Portugal fazer nesta área? Gostava que o país evoluísse no sentido em que se enriquecesse culturalmente, economicamente e tirasse partido das oportunidades que estas novas fronteiras oferecem. Acho que estamos a fazer por isso, nomeadamente com a criação da Agência Espacial Portuguesa, com o programa de pequenos lançadores que está previsto para Santa Maria [Açores]. Agora, Portugal é um pequeno país. O que eu gostaria é que nós pudéssemos recuperar o atraso que temos, ter um tecido empresarial mais forte pelo menos neste setor do espaço e que todos estes projetos possam contribuir para isto. No fundo, seria um final feliz para um conjunto de esforços desta natureza..Imaginava-se a liderar a equipa que vai colocar um satélite feito em Portugal no espaço? Não. Começámos em 2009 com a construção da estação de radioamador de rastreio, ligado a um grupo de radioamadores. Eu sou radioamador. Depois tivemos uma visita de um professor da Universidade Técnica de Delft, na Holanda. Um colega meu, o professor Moisés Piedade, que tinha ligações a essa universidade, convidou-o para vir cá fazer uma prova académica. Ele explicou-lhe que tinham feito um satélite e que o iam lançar brevemente e perguntou-nos se fazíamos o seguimento dele, a partir da nossa estação de rastreio. Foi aí que tudo começou. Começámos a receber sinais do satélite de Delft, o Delfi-C3, e a reenviá-los para a Holanda. Depois pusemo-nos a pensar: "Se eles, que não são muito melhores que nós, foram fazer um satélite, porque é que nós não fazemos também? Temos capacidade para fazer isso." E foi a partir daí. Começámos a ter umas primeiras teses de mestrado neste âmbito. O espaço é sempre um atrativo para muitos alunos, mesmo para aqueles que não estão em Engenharia Aeroespacial.