O nosso maomé

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Dizer uma coisa quando se quer dizer outra - muito frequentemente o contrário - é a definição de ironia. Passa mal, a ironia - não era necessário o homicídio dos caricaturistas do Charlie Hebdo para o provar. Ainda assim, espanta que a capa desta semana do jornal tenha sido tão lida como literal. E não falo do mufti do Egito e companhia, mas da mole de gente que vê no "está tudo perdoado" do título realmente uma mão estendida; que acha que Luz, o autor daquele Maomé mascote, lacrimoso, quer mesmo dizer que até o profeta protesta contra a violência e defende a liberdade; que o CH renegou a sua clássica insolência e se rendeu à pieguice frívola, mercantil (vide o que se pede na net por exemplar; para quando as canecas?) que o movimento "Je suis Charlie" também é.

A genialidade do desenho de Luz é ser espelho, barrete para todos enfiarmos. Não só para a Turquia, Emirados Árabes, Egito, Hungria e Rússia que, malgrado reprimirem, com maior ou menor barbaridade, a liberdade de imprensa, expressão, religiosa e outras, tiveram a desfaçatez de marchar no Boulevard Voltaire. Ou para Passos, que nem pestanejou quando o braço direito Relvas ameaçou com revelação de alegados factos da vida privada uma jornalista para que esta não fizesse perguntas chatas. Ou para o centrista Telmo Correia, lampeiro na "marcha da República" quando no parlamento português clamou votar contra a adoção por casais de pessoas do mesmo sexo por "contrariar a ordem do Criador" (alguém que invoca a religião para recusar uma lei a marchar pela laicidade, caso para dizer por amor de deus). É para eles, sim, e para cada um de nós.

O que aquela capa diz é: pensa, raios. Toda a gente é Charlie? És Charlie? Queres dizer o quê, com isso? Que és contra o terrorismo, e matar pessoas por razões espúrias (quão poucos seremos contra matar pessoas em qualquer circunstância) - OK. Mas que significa seres "pela liberdade"? Que, como tanto se lê nas caixas de comentários, tens inalienável direito a dizer a tua opinião - incluindo insultar, difamar, violar privacidades, apelar ao ódio e à violência?

Durante esta semana, pareceu muitas vezes que ser pela liberdade (que, já agora, inclui a laicidade, tão escamoteada no Portugal dos crucifixos nas escolas públicas) é questão de fé, que a cremos toda poderosa e santificada, tão inquestionável e intocável como os radicais islâmicos querem o seu profeta. Mas que é o Estado de direito, que são as leis, senão limitar a liberdade de cada um para que todos a tenham? "J'écris ton non, liberté", titulava na quinta o jornal francês 20 Minutes, emulando Éluard. Como a capa do CH, o "sinto-me Charlie Coulibaly" (apelido do homem que matou quatro pessoas no minimercado judaico e uma polícia) do comediante francês Dieudonné, pelo qual está acusado de apologia do terrorismo, faz o favor de evidenciar que também esta nossa devoção, a pela liberdade, pode ser uma caricatura.

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