"O Natal dos Hospitais afasta-os do que há de mau na vida"
Ainda "nem uma semana faltava", já António Cabral, de 41 anos, ouvia "muitos dos doentes a perguntar constantemente quando é que o Natal dos Hospitais era". Por aqui, lembra o auxiliar do Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão (CMRA), em Alcabideche, os dias não costumam ser de festa. São de pesar: pesa o braço que não consegue mexer, pesam as pernas que ficaram acamadas. Aqui, trata-se da saúde que pregou partidas. Mas esta quinta-feira, como já acontece desde 2006 neste local, foi dia de festa. Uma vez por ano, perto do Natal, este centro veste-se a rigor para receber o famoso Natal dos Hospitais. Levantam-se os braços ao som de alguns dos maiores artistas portugueses e esquece-se a dor por umas horas. Há algo de "mágico" neste Natal que "afasta a sua cabeça dos problemas que têm, afasta-os do que há de mau na vida". E até "parece que ficam logo melhor", confessa António.
A festa acontece no auditório do centro, em simultâneo no Hospital de São João, no Porto, e nas televisões de todos os portugueses - numa transmissão em direto na RTP, parceira do evento criado pelo Diário de Notícias em 1944 .No dia 24 de dezembro deste ano, o jornal escrevia a primeira página alguma vez publicada sobre o evento que conquistou imediatamente o público, tornando-se em 1958 o programa de entretenimento mais antigo da única estação de televisão pública. Um público disperso, doentes "de todas as condições, de todas as idades, dos mais diferentes pontos do país", escrevia o jornal naquele dia. Um dia depois de o Natal dos Hospitais se ter estreado, no hospital de Arroios, entretanto demolido.
Já lá vão 75 anos, ainda nem António Cabral era nascido. Antes de chegar ao CMRA, há seis anos, "só via a cerimónia na televisão". Naqueles anos, já longínquos, em que começou a sonhar, um dia, trabalhar num lugar como este. Durante anos, António esteve encarregado de cuidar de uma tia com dificuldades motoras, o que só fomentou o gosto por aquilo que atualmente faz. "Quis formar-me nisto, porque amei esta profissão e, assim que tive oportunidade, vim trabalhar para Alcoitão", recorda. O trabalho é paixão, não tem dúvidas. "Gosto muito de trabalhar com os doentes que aqui chegam e de me sentir a segunda família deles - como muitas vezes eles dizem que somos, porque acabam por passar mais horas aqui do que em casa."
E gosta também da festa que aqui vê acontecer há, pelo menos, seis anos. "A minha primeira vez aqui foi como dar um brinquedo a uma criança", lembra, com o corpo irrequieto, quase a lembrar o entusiasmo que sentiu na altura. "Nunca tinha visto estas pessoas ao vivo", cantores de fado ou folclore e apresentadores como Catarina Furtado e José Carlos Malato - no Porto, Sónia Araújo e Jorge Gabriel. "Cada ano gosto ainda mais", confessa.
Todos os anos, sobem a palco "os artistas mais queridos das plateias lisboetas, vedetas do cinema, do music hall e da rádio, gente hilariante do circo, as mais formosas vozes da canção", descrevia o DN em 1944. Amália Rodrigues já fez parte do cartaz que incluiu artistas como António Variações, Simone de Oliveira, Herman José, Dina e Marco Paulo. Este último como presença cativa há mais de 40 anos: Marco Paulo voltou a subir ao palco nesta quinta-feira.
António chegou com Matilde Firmino, uma doente numa cadeira de rodas que ele mesmo empurra pela sala onde decorreu o espetáculo desta quinta-feira. As suas pernas "já não são o que eram", conta. No sábado, fará 76 anos de vida. Nasceu, por isso, um ano antes de o Natal dos Hospitais arrancar. "Se já conhecia o Natal dos Hospitais? Ah, se conhecia! Desde solteira!", exclama.
Nem todos os doentes marcaram presença no auditório. "Alguns estão na enfermaria, outros preferem ficar no tratamento, porque estão focados com os seus objetivos de recuperação", explica o auxiliar António Cabral. Mas Matilde não perde a festa. Aos 11 anos, fez questão de ir ver o espetáculo ao vivo, no hospital de Cascais, localidade onde sempre morou. Ainda nem este Natal era evento televisivo. Quando começou a ser transmitido pela RTP, todos os anos, reservava aquele dia para o passar "em frente ao ecrã". E desde que chegou ao centro de Alcoitão que não falha um. "Bem, falhei uma vez, porque estava internada no hospital", confessa.
Há nove anos que é visita recorrente no CMRA, saltando entre consultas e sessões de tratamento. Admira "a família" que aqui criou - "não é um hospital, nem um centro de reabilitação, é uma família", garante. Mas lamenta o que a trouxe até aqui: um acidente vascular cerebral (AVC), que danificou a motricidade das suas pernas. Do dia em que aconteceu lembra-se como se fosse hoje: "Estava a ir para a lota, buscar peixe, quando comecei a sentir-me mal." Pouco depois, "o corpo caiu no chão".
Talvez "a vida de um lado para o outro" e "sem parar" tenha favorecido este destino. Desde que se lembra que é vendedora de peixe. Onde? "Por aí. Sou como um passarinho", responde, sorrindo com a ideia. "Começava a trabalhar quando o sol aparecia e só acabava quando ele desaparecia. Às 07.00, descia caminho até ao mar, a partir da praça junto à antiga Praça de Touros de Cascais", onde morava. A profissão "é quase hereditária". Os pais foram vendedores de peixe e Matilde criou os oito filhos assim também. "Até os netos já estão na venda. A minha família é do mar", conta. Só o falecido marido é que foge à regra: era pedreiro.
Matilde continua a ser do mar, mas o mar já não é de Matilde. "Agora, já não posso trabalhar como trabalhei", lamenta, garantindo que tem, contudo, "muitas razões para estar feliz". Como, por exemplo, estar todos os anos no Natal dos Hospitais, "abraçada ao Malato", como esteve nesta quinta-feira.
Na plateia está também João Serôdio - "aquilo que vem depois do tempo", explica o apelido. Mas João não vem tarde. Na verdade, foi dos primeiros a chegar ao auditório do centro de Alcoitão e, por isso, ocupou logo a segunda fila, sentado na sua cadeira de rodas.
Aos 58 anos, foi vítima de um AVC, em setembro, à semelhança do que aconteceu com Matilde Firmino. Para ele, a vida era feita a correr. Levava "uma vida muito ativa", entre o trabalho como "técnico de termografia na EDP", o cargo de "dirigente sindical, membro de uma associação de moradores e massagista desportivo". "Fazia muitas atividades, gostava de colaborar em tudo" e viu "os frutos disso" no seu "pior momento", quando teve o AVC: "As pessoas que eu ajudei não se esqueceram de mim e ligaram-me a pedir para estar comigo", recorda, emocionado.
Está no CMRA desde 15 de novembro - com alta prevista para 15 de janeiro -, mas antes ainda passou pelo Hospital Beatriz Ângelo e pela Raríssimas. Em Alcoitão, repara agora os danos deste acidente: um braço direito sem sensibilidade, o esquerdo sem força e o desequilíbrio nas pernas.
Apesar da tempestade, o rosto de João mostra bonança - recebe todos com um sorriso, como se vivesse o melhor dia da sua vida. Não está nem lá perto, confessa, mas viver o Natal dos Hospitais é viver "um momento de alento". "É uma ocasião completamente diferente daquelas a que estamos habituados: há cantores e apresentadores, vêm ter connosco e nós ficamos a conhecê-los. E é uma oportunidade para conviver com outras pessoas, de outros pisos, que também estão cá internadas, mas que normalmente não vemos", conta.
Apesar de sempre ter visto o espetáculo na televisão, "é a primeira vez" que o vê ao vivo. E, esperando que tudo corra bem, quer "que seja a última", brinca.
Já para o Presidente da República, para quem a presença neste evento não foge da agenda, não deverá ser a última. Marcelo Rebelo de Sousa esteve nesta quinta-feira no centro de Alcoitão, no mesmo dia em que celebrou o seu 71.º aniversário, distribuindo beijos e abraços pela plateia.