"Estranho público" este. São "pálidas crianças, mulheres sem força, velhinhos alquebrados, salas repletas de homens novos e soldados e marinheiros, gente de todas as condições, de todas as idades, dos mais diferentes pontos do país, doentes que passam as longas noites das enfermarias misturando nas meditações dos prolongados silêncios o desespero das suas dores com a nostalgia duma saudade do sol das ruas e do fogo acolhedor dos lares". É o público do Natal dos Hospitais, uma festa "de felicidade e de alegria", noticiava o DN, a 24 de dezembro de 1944. Um dia depois de o primeiro Natal dos Hospitais se estrear, sob a alçada deste mesmo jornal, que fundou o evento, no Hospital de Arroios - já demolido..Todos os anos, desde então, a festa aconteceu, perdurando já por 75 edições. Num ou mais hospitais do país, vários dos mais conhecidos artistas do país (do fado ao folclore) apareciam para cantar perante uma multidão de crianças e adultos ali internados. "As grandes damas dos palcos portugueses, os artistas mais queridos das plateias lisboetas, vedetas do cinema, do music hall e da rádio, gente hilariante do circo, as mais formosas vozes da canção", descrevia o DN. Amália Rodrigues também pisou estes palcos, com meninos aos seus pés, que ansiavam por estar perto do artista que ali cantava..Mais tarde, em 1980, o cartaz ganhava nomes como Marco Paulo, Simone de Oliveira, Herman José e Dina Duarte. E o Coro de Santo Amaro de Oeiras é uma presença clássica neste dia do ano..Também António Variações foi estrela nesta iniciativa..Até os apresentadores eram figuras deste cartaz de celebridades: apresentaram o Natal dos Hospitais figuras como Vasco Santana e Mirita Casimiro. Mais recentemente, as duplas Catarina Furtado e José Carlos Malato, assim como Sónia Araújo e Jorge Gabriel, um em Lisboa, outro no Porto - com uma emissão em simultâneo..Este evento ficou longe dos holofotes até 1958, quando a RTP passou a transmiti-lo, naquele ano com a apresentação de Henrique Mendes. É, por isso, o programa de entretenimento mais antigo da história da estação televisiva. Por isso mesmo, acompanhou todas as maiores transformações da televisão. Até os anos em que o preto e branco dos ecrãs deram espaço à cor. "Transmissão pela TV a cores beneficia o que foi o 'maior espetáculo do ano'", contava-se nas páginas do DN de 20 de dezembro de 1980..O Natal dos Hospitais deixou de ser apenas dos doentes internados nestas instituições para ser uma festa de todo o país. Ainda mais tarde, em 1962, passaria também a ser transmitido pela Emissora Nacional, prolongando-se até ao final do século XX já na atual Antena 1 (RDP).."A verdadeira festa do ano".Quando a iniciativa começou, o panorama sociopolítico - no país e no mundo - era débil. Faltava ainda um ano para assistir ao término da II Guerra Mundial e, em Portugal, a pobreza ganhava dimensão. Eram também tempos autoritários, o tempo de Salazar, em que vigorou o Estado Novo. Mas havia tempo para festa. O Natal dos Hospitais chegou a ser considerado, aliás, "a verdadeira festa do ano", lia-se na edição de 23 de dezembro de 1969 do DN..Neste mesmo ano, 1969, o jornal e o Sindicado Nacional dos Artistas Teatrais foram "galardoados com a medalha de ouro de serviços distintos do Ministério da Saúde e Assistência. Já a "Radiotelevisão Portuguesa, a Emissora Nacional e a Philips Portuguesa foram-no também com a medalha de bronze dos hospitais civis", noticiava ainda o DN. A marca Philips, que desde cedo inscreve o seu nome no evento, passou a distribuir televisores no dia da emissão..Na década de 1970, a festa decorria à tarde, entre as 14.00 e as 19.00, muitas vezes até fora dos hospitais - chegou a acontecer no Casino Estoril e no Coliseu dos Recreios. A partir da década seguinte e até 2005, o evento passou a ser dividido entre Lisboa (no Centro de Reabilitação de Alcoitão) e o Porto (no Hospital de São João) - num local decorria da parte da manhã e no outro à tarde. Desde 2006 que decorre simultaneamente nos dois lugares, numa emissão televisiva intercalada. E em 2007 foi até realizada em seis hospitais do país, de norte a sul: além de Lisboa e do Porto (com os palcos principais), Bragança, Beja, Coimbra e Castelo Branco..Ao final de 75 edições, a festa continua. Este ano, volta ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão e ao Hospital de São João, esta quinta-feira. Nos hospitais, "o sofrimento" até pode ser "maior" - "quantos enfermos sem visitas". Mas "para este estranho público dos hospitais", ainda há todos os anos "uma linda hora de felicidade e de alegria", ideias inscritas no DN em 1944 que continuam a ser verdade.