Em Povo vs. Democracia, Yascha Mounk faz um diagnóstico sobre a erosão das democracias liberais e considera que algumas democracias estão a transformar-se em iliberais e outras em liberalismos não democráticos. Parte da solução passa pelo "nacionalismo inclusivo" e em restaurar uma "fé cívica" nas instituições democráticas..Mounk, de ascendência judaica, nasceu há 37 anos em Munique, filho de pais polacos. Estudou História em Cambridge e doutorou-se em Harvard, onde começou a dar aulas. É agora docente na Johns Hopkins, em Baltimore. No dia em que o seu livro chega às livrarias, Yascha Mounk profere uma palestra na Nova SBE, em Carcavelos (18.30).O que é mais perigoso: uma democracia liberal tornar-se uma democracia iliberal ou um liberalismo não democrático? Ambos são perigosos e igualmente maus. A premissa central da democracia liberal significa que temos liberdades individuais, podemos decidir o que dizer ou não, ou como levamos as nossas vidas. E temos direito à autodeterminação, juntos podemos fazer as próprias leis em vez de um ditador. Quer se falhe em transmitir as políticas públicas quer se comece a dizer como é que as pessoas devem viver e se comece a puni-los por terem opiniões erradas, estamos a falhar em várias premissas fundamentais. Rejeito a escolha entre democracia iliberal e liberalismo não democrático. Eu luto pela verdadeira democracia liberal..Como vê Israel, considerada a única democracia no Médio Oriente? É uma democracia liberal? Ao longo da história muitos países tiveram democracias liberais funcionais para partes da população e ao mesmo tempo excluíam outras partes da população da participação plena. Numa forma extrema, foi verdade no sul dos EUA nos anos 1960. Isto é verdade em certa medida em Israel, os cidadãos palestinianos são discriminados de alguma forma, embora tenham direito a votar e quem sabe se não farão parte do próximo governo. Por outro lado, Israel é uma democracia liberal para a maioria dos cidadãos, que são judeus. E aí vejo Benjamin Netanyahu como uma ameaça ao funcionamento de instituições independentes, ao trabalho dos media independentes, numa forma parecida com o que Silvio Berlusconi fez em Itália. Felizmente, Israel tem um sistema de representação proporcional, o que tornará mais difícil a Netanyahu conseguir uma maioria absoluta e parece que vai sair do governo. Nesse sentido, a democracia israelita parece mais forte do que há umas semanas. Mas claro que é prematuro tirá-lo da equação, Netanyahu pode voltar mais tarde..Um aparente paradoxo sobre o qual escreve é que os populistas exigem o aprofundamento da democracia através da realização de referendos. A democracia direta é uma ameaça às democracias? Uma das razões pelas quais eu distingo o elemento liberal do elemento democrático no livro é pelo facto de que podem entrar em conflito, podem divergir, e que nos pode levar a pensar de forma mais clara. Há dez anos, a Suíça fez um referendo sobre permitir ou proibir a construção de minaretes. A maioria votou não. A Constituição suíça garante a liberdade religiosa mas proíbe a construção de minaretes. Parece um pouco contraditório. Parte da imprensa suíça e internacional comentou o resultado como antidemocrático. Isso parece-me confuso. Se a maioria da população votou e o voto foi tomado em linha de conta, como é antidemocrático? Para mim tem muito mais sentido dizer que o voto foi iliberal, violou os direitos da principal minoria religiosa na Suíça e, do meu ponto de vista, foi um mau resultado. Não creio que os referendos, em termos genéricos, sejam uma ameaça à democracia. Acredito, sim, que possam levar a políticas iliberais e que frequentemente levem a crises de legitimidade. É perfeitamente razoável haver um referendo sobre temas importantes sobre os quais as pessoas têm opiniões fortes e que cada opção seja relativamente óbvia - por exemplo, o casamento de pessoas do mesmo sexo. É muito mais complicado num tema como o Brexit. O que se passou no Reino Unido é que era óbvio o que significa a permanência, basicamente o statu quo, mas não era nada óbvio o que significava a saída da União Europeia, porque havia uma enorme gama de resultados sobre o que poderia significar. E, a partir do momento em que as pessoas votaram pela saída, ninguém tinha legitimidade para determinar o sentido do voto. E isso é um desafio gigante..Sustenta que a ligação entre os representantes e o povo tem sofrido uma erosão nas últimas décadas devido a vários fatores. Entre outras medidas, propõe restrições à imigração e um nacionalismo domesticado. Pode explicar? Na minha biografia não irá encontrar uma especial tentação em ser muito nacionalista. Cresci com a esperança de que poderíamos deixar o nacionalismo para trás. Mas observei algumas coisas. As diferenças culturais entre os países são muito maiores do que pensava. Cresci na Alemanha e vivi em Itália, França, Reino Unido e Estados Unidos. Adoro todos estes sítios e são muito diferentes uns dos outros. É algo que devemos reconhecer e, já agora, saudar. Depois, quando entrei na universidade, em 2000, era fácil pensar que o nacionalismo estava ultrapassado. Hoje é óbvio que o nacionalismo mantém-se como a mais poderosa força política no mundo. Se todas as pessoas tolerantes o ignorarem e disserem que é politicamente incorreto, vamos fomentar os nacionalistas e ter um problema enorme. Acho que a melhor resposta é defender um nacionalismo inclusivo. É bom ter uma identidade forte enquanto português. É bom que, quando acontece algo a uma pessoa de Faro ou do Porto, outra em Lisboa tenha vontade de ajudar, que a veja como um compatriota. Mas gostar de Portugal não implica odiar Espanha ou França. E a identidade de um português não deve depender da cor da pele ou da religião. Acho que o nacionalismo é um animal meio selvagem, meio domesticado, com a hipótese de se tornar selvagem e causar muita destruição. Em vez de abatermos o animal, o melhor é domesticá-lo..E essa domesticação passar por conter a imigração? Não faria uma ligação muito forte, não. Veja, a Kamala Harris, quando lançou a campanha nos Estados Unidos, disse: "Esta é a nossa bandeira. Não deixem que no-la tirem." Isso parece um início correto. A bandeira norte-americana não deve ser o símbolo de Donald Trump ou dos norte-americanos brancos. Devem representar todos os norte-americanos, incluindo Kamala Harris. O discurso sobre o nacionalismo inclusivo pode estar ligado à migração no sentido em que nos impele a ter a mesma solidariedade com os concidadãos que chegaram ao país ou que os seus pais chegaram ao país da mesma forma que os outros cujos avós, bisavós ou tetravós já viviam..Então porque menciona a restrição à imigração? Bom, não estou na verdade a advogar isso. ["Os defensores do nacionalismo inclusivo (...) devem levar a sério as preocupações com o ritmo elevado da imigração e reconhecer que a nação é uma comunidade geograficamente limitada que só consegue manter-se quando tem o controlo das suas fronteiras", pág. 217; "Está perfeitamente de acordo com os princípios da democracia liberal que os Estados-nação respeitem a vontade popular diminuindo o número de imigrantes que acolhem", pág. 218] É importante distinguir críticas de governos populistas com os quais podemos todos concordar de outros com os quais podemos discordar de forma legítima. Penso que é legítimo o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán dizer que o país não aceita refugiados. Não concordo com essa posição, mas penso que é algo legítimo de se decidir se ele tiver o apoio da maioria dos cidadãos. O que não é legítimo é tomar o controlo do aparelho judiciário, da comissão das eleições e dos media de tal forma que o povo não pode livrar-se do governo se as pessoas mudarem de ideias quanto às suas políticas..Como é que os adversários políticos podem combater populistas como Trump, Bolsonaro, Orbán ou Erdogan? Primeiro devem estar conscientes da gravidade do perigo do populismo. Mas não devem caluniar os seus apoiantes. Porque quando metade de um país vota nessas forças políticas é necessário chamá-los de volta, é necessário convencê-los de que fizeram um erro. Isso não vai acontecer se chamarmos a essas pessoas racistas, fanáticas e dissermos que não há esperança para elas. Quando Hillary Clinton chamou aos apoiantes de Trump "deploráveis", ajudou à vitória deste. Vejo isso a acontecer hoje no campo democrata. Dizem que não vale a pena falar para esse eleitorado, que são más pessoas. Não acho que seja assim que consigam vencer Trump e mesmo que o façam, ao mobilizarem mais eleitorado, continua a significar que na próxima eleição podem voltar a perder. Além disso, há que ter um programa pela positiva, que prometa às pessoas que a vida no futuro vá ser melhor do que no passado, que as faça acreditar nalguma coisa. Creio que alguns partidos falham neste ponto..É verdade que decidiu ser um intelectual quando era muito novo? Quando é que viu a luz? Venho de uma família em que a política não era uma abstração. Revoluções, pogroms, contrarrevoluções moldaram a história da minha família, por isso cresci a pensar em política, é algo que tem o potencial de afetar as pessoas de forma direta. Sempre tive o desejo de comunicar os meus pensamentos e por isso, sim, desde cedo quis falar e escrever sobre política. Teria uns 15, 16 anos. Ao mesmo tempo queria ser encenador, trabalhei como assistente de encenador durante quatro anos na Alemanha. Em certa altura, achei que seria possível fazer as duas coisas. Mas não gostei da experiência por vários motivos. Um deles é que as pessoas fingem que são muito amigas e que não há hierarquias, mas é um lugar profundamente hierarquizado. Não queria estar na base da hierarquia nem queria ascender ao topo da hierarquia..Mas a academia também pode ser um local semelhante. Pode ser, mas estudei em Inglaterra, em Cambridge. Aí as hierarquias são bastante visíveis. Os professores da minha faculdade podiam andar na relva e os estudantes não podiam, é uma forma muito explícita de hierarquia e tem algo de desagradável. Mas permitia aos nossos professores serem intelectualmente eruditos. Um professor disse sobre a primeira dissertação que escrevi: "Fizeste um bom resumo destas obras. Mas qual é a tua opinião? Quero que os desafies, que chegues às tuas conclusões." E para mim, que cresci na Alemanha, foi algo de novo. Portanto, por detrás da fachada da hierarquia havia uma cultura intelectual. No teatro era ao contrário. Tratávamo-nos por tu e éramos amigalhaços, mas, se o assistente do encenador duvidava que o Bayern de Munique iria ganhar o próximo jogo, o encenador dizia para me calar, porque não era a minha função discordar.. Povo vs. Democracia .Yascha Mounk Lua de Papel, 390 págs. 18,50 euros