O musical de teatro Elza - sucesso no Rio, agora em São Paulo e, pelo visto, até ao fim dos tempos no resto do Brasil - é mais uma prova de que Elza Soares, em cuja vida o espetáculo se baseia, é o maior caso de ressurreição na história da música brasileira. Em sua carreira como cantora, que já passa de 60 anos, ela experimentou um período de enorme sucesso, nos anos 1960 e 70, e outro de total obscuridade, nos anos 1980 e 90. Mas, desde então, começou a voltar e nunca mais parou. Na verdade, nunca mais parou de crescer. Hoje, aos 81 anos oficialmente - sua idade real é mais difícil de calcular -, e cantando sentada, Elza Soares está maior do que em qualquer época de sua carreira. E com potencial para crescer ainda mais..Gosto de pensar que tenho uma pequena participação na ressurreição de Elza. Quando a procurei em 1994, para lhe dizer que estava trabalhando numa biografia de Garrincha -- seu ex-marido e o homem com quem ela viveu mil vidas - e que tinha muitas perguntas a lhe fazer, ela me recebeu e garantiu que me receberia quantas vezes fossem necessárias. E foram muitas vezes. Pelo menos uma vez por semana, eu ia para seu apartamento e passávamos horas conversando - eu lhe fazia uma média de 50 perguntas em cada sessão. Nitidamente, ela tinha todo o tempo do mundo..Nos quase dois anos em que colaborou comigo no livro sobre Garrincha, deve ter feito pouquíssimos shows. Aliás, só me lembro de um, a que assisti, e em que ela foi extraordinária. Eu a visitara na véspera, e Elza estava com um resfriado federal - febre, tosse, coriza, falta de ar, dores no corpo. Convidou-me para o show, e eu não via como aquela mulher que se desfazia à minha frente poderia se apresentar. Mas foi o que aconteceu: Elza cantou, sambou e incendiou a plateia. Seu resfriado passara como por mágica. Ao fim do espetáculo, eu e Heloísa fomos visitá-la no camarim. E - surpresa - o resfriado voltara! Mas não era isso. Ele não passara. Só se interrompera para que ela cantasse. Mas assim são os grandes artistas..A imagem de Elza naquela época não era boa. Ainda se acreditava que ela levara Garrincha a beber, destruíra a sua carreira e o conduzira à morte, por alcoolismo, aos 49 anos. Mas eu sabia que não era nada disso. Elza fora a grande mulher na vida de Garrincha, que já bebia muito antes de conhecê-la em 1962. Aquele, por sinal, com ou sem Elza, seria o último grande ano de sua carreira como jogador, e, pelos 15 anos seguintes, ela faria tudo para salvá-lo. Acompanhou-o por toda parte, defendeu-o de críticas, ocultou as suas bebedeiras, deu-lhe um filho e sustentou-o financeiramente. Pode dizer-se hoje que, tecnicamente, Elza foi uma facilitadora da dependência de Garrincha. Mas esse conceito ainda não era conhecido na época. Além disso, ela o amava. Em nome desse amor, aguentou todos as ofensas que lhe eram dirigidas pelos fãs de Garrincha, que não sabiam a que ponto chegara o processo de autodestruição do seu ídolo..Até que, em 1977, Elza tomou a decisão que todos os estudiosos de alcoolismo hoje aprovariam. Se não era possível salvar Garrincha, ela tentaria salvar-se. Largou Garrincha. Sem ela, ele só resistiu por cerca de cinco anos. Em janeiro de 1983, estava morto. E Elza, profissionalmente, também estava. Ela, que fora a estrela da poderosa gravadora Odeon nas duas décadas anteriores, trabalhava agora para gravadoras menores e não conhecia nem sombra do antigo sucesso..Em 1994-95, em função do livro, visitei Elza nos diferentes apartamentos em que ela morou no Rio - em São Conrado, no Flamengo, em Copacabana. Passava pouco tempo em cada um e logo se mudava - porque seria? E, a cada novo apartamento, a sua mobília parecia diminuir. Elza não tinha em casa um único disco seu, uma fotografia, um recorte de jornal. Ou não ligava para isso ou perdera tudo. E, então, o meu livro, Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha, foi lançado, em novembro de 1995. O livro teve problemas com a justiça - os advogados das pobres filhas de Garrincha me processaram -, mas acabou sendo um grande sucesso. E pode ter ajudado na mudança da imagem pública de Elza. Nele ficava estabelecido que ela, longe de ser uma vilã, fora, ao contrário, uma heroína..E essa imagem de heroína, que ali começou a se estabelecer, nunca mais parou. Alguns anos depois, Elza se firmou como a mulher que nascera negra e pobre, e fora abusada pelos homens, pelos críticos e pela sociedade, mas sobrevivera a tudo. Voltou a ser admirada. Uma mudança de orientação musical fez que trocasse o samba, de que era uma das maiores cantoras de todos os tempos, por uma música mais "moderna", mais "jovem". Ela própria rejuvenesceu. E, como é muito inteligente, passou a dar grandes entrevistas, cheias de frases de efeito. Diz que veio "do Planeta Fome", que é "a mulher do fim do mundo" e, quando lhe perguntam a sua verdadeira idade, responde: "Tenho três mil anos - como a rainha Nefertiti, símbolo da beleza"..Nos últimos anos, só estive com Elza casualmente em aeroportos, ela sempre indo para algum lugar. O Brasil inteiro a quer. E talvez o mundo - há tempos, fez um show ao ar livre no Central Park, em Nova Iorque, para milhares..Mulher do fim do mundo? Nunca. Para Elza Soares, o mundo não terá fim..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros livros, Estrela Solitária - Um Brasileiro Chamado Garrincha (Tinta da China).