O moçambicano que pintou o país da sua infância

O pintor moçambicano Malangatana morreu ontem, aos 74 anos, mas deixou uma obra vasta, que abarca ainda a escultura, a poesia e a dinamização cultural. Uma obra profundamente marcada pelos temas africanos e por um "realismo fantástico". Nascido em Matalana, o jovem pobre que era apanha-bolas no clube de golfe de Lourenço Marques começou a pintar o que lhe ia na alma, mesmo sem saber nada sobre história ou teoria da arte, e a vender os seus quadros na rua por vinte escudos. O seu talento chamou a atenção e Malangatana tornou-se um artista conceituado e reconhecido em todo o mundo.
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"Pintar é um conversar sobre os nossos desejos, dilemas e receios. O cozinhar de um quadro não pode ser um mero exercício de trabalho, tem de ser um espelho do que vai na alma", dizia Malangatana, o artista moçambicano e grande embaixador cultural do seu país, que morreu ontem aos 74 anos, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, vítima de cancro.

Malangatana começou a vender os seus primeiros quadros, no final dos anos 50, numa esquina perto do café Continental, em Lourenço Marques (hoje Maputo). As pinturas chamaram a atenção do escritor e jornalista Guilherme de Melo. "Vendia os quadros porque precisava do dinheiro para comer e eu comprei-lhe alguns a 20 escudos e escrevi sobre ele no jornal. Pouco depois, a sua obra começou a chamar a atenção nos núcleos intelectuais e artísticos da cidade", recorda Guilherme de Melo.

Malangatana Valente Ngwenya nasceu a 6 de Junho de 1936 em Matalana, uma povoação do distrito de Marracuene. Com a mãe doente e um pai ausente, pois era mineiro na África do Sul, foi viver com o tio paterno e estudou até à terceira classe. Aos 11 anos começou a trabalhar. Foi pastor, aprendiz de curandeiro e mainato (empregado doméstico).

Em 1947 mudou-se para a capital, para trabalhar como "criado de meninos", nas suas próprias palavras, "e fazia muitos desenhos para eles". Foi também apanha-bolas no Clube de Ténis de Lourenço Marques, onde conheceu o artista e biólogo Augusto Cabral e, através dele, João Aires, com quem se iniciou na pintura.

Outra influência importante foi a do arquitecto Amâncio (Pancho) Guedes, que lhe disponibilizou um espaço na garagem de sua casa e lhe comprava dois quadros por mês, a preços inflacionados. Foi também ele que lhe ofereceu o primeiro livro de arte, sobre Gauguin. E foi em casa de Pancho Guedes que, conversando e ouvindo os debates de outros artistas que ali se reuniam, foi aprendendo cada vez mais coisas sobre arte.

"Eu comecei a aprender por teimosia", contaria Malangatana numa entrevista. "Mas era difícil. Só comecei a condimentar bem o português mais tarde..." A primeira exposição colectiva aconteceu em 1959 e, dois anos depois, a primeira individual. Um êxito, com direito a longa referência elogiosa na revista Black Orpheus. É também por essa altura que conhece Eduardo Mondlane, fundador da Frelimo, que o convence a ficar em Moçambique.

Desde o início, os especialistas viram na sua pintura laivos surrealistas. O artista explicava: "Muitas vezes estava a dormir, tinha alucinações ou sonhos de monstros, de que tinha mesmo medo. Levantava-me e pintava. Isso era para mim uma descarga." Nos seus quadros há monstros, há lendas, mas há, sobretudo, pessoas. Bastava-lhe ver o mundo para se inspirar: "São os acontecimentos do mundo, às vezes tristes, outras alegres, e eu não fico indiferente."

Além de pintar, fez cerâmica, tapeçaria, gravura e escultura. Foi poeta, actor, dançarino, músico, dinamizador cultural, organizador de festivais, filantropo e até, entre 1990 e 1994, deputado, da Frelimo, partido no poder em Moçambique desde a independência. Ainda que o seu lado político seja o menos conhecido, Malangatana chegou a estar preso, pela PIDE (polícia política da ditadura portuguesa), acusado de pertencer ao então movimento de libertação Frelimo, sendo libertado apenas ao fim de 18 meses, por não se provar qualquer vínculo à resistência colonial.

Em 1971, veio pela primeira vez a Portugal, a então metrópole. Desde essa altura, multiplicaram-se as exposições um pouco por todo o mundo, tornando-se o mais conhecido artista de Moçambique.

Em 1989, a Sociedade de Belas Artes, em Lisboa, acolheu uma exposição retrospectiva da sua obra. Malangatana foi um dos criadores do Museu Nacional de Arte de Moçambique e dinamizador do Núcleo de Arte. Foi nomeado Artista pela Paz (UNESCO), recebeu o Prémio Príncipe Claus e também a medalha da Ordem do Infante D.Henrique. No ano passado, em Évora, foi-lhe concedido o doutoramento honoris causa. "O artista cresceu e amadureceu, mas ele nunca perdeu aquele ar de meninão, naïf e genuíno, que sempre foi", recorda agora Guilherme de Melo, a quem Malangatana, como a outros de quem se sentia muito próximo, sempre tratava por "irmão".

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