Se por acaso nos encontrássemos em Bolonha na tarde de 6 de Julho de 1826 (uma quinta-feira amena), e nos ocorresse convidar Giacomo Leopardi para jantar, o mais provável seria ouvirmos uma recusa. Não porque ele já tivesse planos, mas porque o mais certo era desconfiar (correctamente) da nossa vontade de ficarmos calados durante a refeição.."Comer sozinho era uma infâmia para os Gregos e Romanos (...) Os antigos tinham razão, mas porque não conversavam uns com os outros à mesa até terem acabado de comer, quando o simpósio, no verdadeiro sentido da palavra, começava, ou seja, a bebedeira. Era essa a altura de maior divertimento, bom humor, maior desejo de conversar e tagarelar. (...) Mas quando comiam, os antigos estavam em silêncio. Nós abandonámos este costume natural de beber juntos, e agora falamos enquanto comemos. Pois eu não serei persuadido de que a única altura do dia em que temos a boca cheia, quando os órgãos que usamos para falar estão portanto ocupados (...) é o melhor momento para falar. (...) Prefiro lidar com a comida na minha boca de acordo com as minhas necessidades, e não com as de terceiros, que muitas vezes se limitam a devorar o que levam à boca sem mastigar. (...) [Esta] é uma das razões pelas quais acredito que é uma excelente escolha da minha parte comer sozinho". [Zibaldone, 4183-4184; 6 de Julho, 1826]..Leopardi nasceu na vila costeira de Recanati em 1798, filho mais velho do Conde Monaldo, um aristocrata reaccionário, extravagante, e viciado no jogo, que conseguiu derreter com tamanha competência a fortuna familiar que o Vaticano se deu ao trabalho de o proibir expressamente de voltar a manusear dinheiro. A gestão do património familiar ficou a cargo da mulher, a Condessa Adelaide, e a independência financeira do Conde reduzida ao privilégio de adquirir milhares de livros a mosteiros e conventos da região, vendidos a preço de saldo quando Napoleão invadiu a Itália e extinguiu as ordens religiosas..O jovem Giacomo teve onze irmãos, sete dos quais morreram praticamente no berço (para enorme alegria da mãe, que considerava não haver vida para lá do défice), e passou a quase totalidade da infância e adolescência enfiado na biblioteca do palazzo. Os seus tutores privados depressa confessaram não ter muito mais para lhe ensinar. Um prodígio de precocidade caricata, aos 15 anos Leopardi já dominava várias línguas vivas e mortas, traduzira Homero, e escrevera vários volumes de prosa discursiva, incluindo uma megalómana História da Astronomia. Este currículo intelectual é enriquecido com um impressionante catálogo de problemas físicos: escoliose, raquitismo, asma, miopia, hidropisia, prisão de ventre. O seu aspecto físico era tão pavoroso, que as crianças de Recanati adquiriram o hábito patusco de lhe atirar pedras sempre que ele saía à rua. Sair à rua, tal como jantar em companhia, foi algo que aprendeu a evitar..O que fazia muitas vezes era escrever, actividade a que, pelo menos até aos 24 anos, se dedicou com um fervor monomaníaco, preenchendo um manuscrito colossal de quase cinco mil páginas. O nome que lhe deu - Zibaldone - era um termo coloquial italiano (originalmente para uma refeição preparada de improviso) usado para designar barafundas de prosa avulsa, a meio caminho entre os nossos "mixórdia" e "miscelânea"..Uma versão completa do Zibaldone só foi publicada quase sessenta anos depois da morte de Leopardi, e durante muito tempo a sua leitura permaneceu um privilégio de quem dominava a língua italiana. A primeira tradução integral em língua inglesa foi publicada em 2013 pela Farrar, Strauss & Giroux. A empreitada precisou de sete tradutores a trabalharem durante sete anos (o que podia ser o início de uma fábula) e foi financiada em parte graças ao empenho pessoal de Silvio Berlusconi (o que podia ser o início de outra fábula). O objecto tem cerca de 2500 páginas de papel finíssimo, e pesa o equivalente a sete botas Timberland..É difícil descrever o efeito geral do Zibaldone, mas um bom ponto de partida é estipular a indecorosa insuficiência de lhe chamar um "livro", que é como chamar "quintal" ao Gerês. Mesmo a mais incoerente miscelânea pressupõe omissões, mas o único princípio operativo de Leopardi era a inclusão, e o manuscrito reúne essencialmente tudo aquilo que veio à cabeça de um génio entre os 21 e os 24 anos (período em que anotou mais de dois terços do total)..Há bastantes frases que almejam à condição de aforismo, em quantidade suficiente para o filiarem na linhagem de Schopenhauer, Nietzsche e Cioran - o contingente estilístico que anda há décadas a proporcionar a adolescentes o pretexto ideal para se vestirem de preto e tirarem fotografias em cemitérios. (Schopenhauer, de resto, ficou previsivelmente histérico quando descobriu Leopardi, e elogiou-lhe o "pessimismo", o que é mais ou menos como ter o Papa a elogiar-nos o catolicismo)..Uma reacção comum, e legítima, da posteridade, foi ponderar quanto desse "pessimismo" foi uma reacção comum, e legítima, às circunstâncias específicas de Leopardi. É a mais velha questão da filosofia. O que é que vem primeiro: uma objecção de princípio a jantar em companhia, ou a dificuldade em encontrar quem queira jantar connosco? Aquilo que o leitor contemporâneo sabe sobre o seu aspecto físico (a sua corcunda, o seu metro e quarenta e dois) vai inevitavelmente contaminar o que sente ao ler as dezenas de reflexões impessoais sobre o corpo humano - outra área na qual Leopardi era um especialista teórico.."Hoje em dia é muito comum um grande homem ter um físico frágil ou até defeituoso. Pope, Voltaire, Descartes, Pascal. Assim é: a grandeza intelectual não pode ser alcançada sem que a constante actividade mental desgaste o corpo, como uma espada faz à bainha." (207; 11 de Agosto, 1820)..Tudo isto não esgota uma ínfima percentagem da mixórdia, que revela uma curiosidade voraz, assombrosa, e aparentemente incapaz de hierarquizar o nível de interesse que os vários objectos da sua atenção lhe despertam. A um aforismo soturno do sub-género "a-vida-é-sofrimento-e-depois-morremos" pode perfeitamente seguir-se uma explicação de página e meia da tendência humana para recordar falsamente as condições meteorológicas da sua infância, ou uma tangente de três parágrafos sobre a irritação provocada pelo hábito francês de subtrair a vogal mais expressiva quando adopta vocábulos latinos ("nausea > nausée"). Tangentes filológicas são, aliás, abundantes. A dada altura, 11 de Setembro de 1828, para ser exacto, Leopardi faz um breve resumo de um tomo da Academia Real das Ciências de Lisboa, assinado por Rodrigo Fonseca da Costa. Leopardi não tinha apenas opiniões sobre os Lusíadas; também tinha opiniões sobre a necessidade de uniformizar a ortografia portuguesa. Tinha até opiniões sobre aquilo que andaríamos todos a fazer na internet, dois séculos mais tarde.."Muitos prazeres só são prazeres porque temos esperança de os relatar. Sem isto, sentiríamos um enorme vazio. Essa esperança torna agradáveis coisas que não seriam agradáveis. O efeito deve ser atribuído à ambição de parecer interessante, etc, e não ao de comunicar ou partilhar as nossas sensações." [1584; 29 de Agosto, 1821).Apesar de ter lido quase todos os livros, Leopardi não lia muitos jornais, que tinha em má conta. Há uma mão cheia de referências a jornais no Zibaldone, quase todas qualificadas com parênteses nabokovianos ("inúteis", etc), ou indexadas a outra categoria recorrente de referências: aquilo que é "efémero", como os insectos de vida curta que tanto o fascinavam..Escrever todos os dias sobre uma variedade de assuntos diferentes é algo muito mais comum, e que muito mais pessoas fazem, no nosso tempo do que no tempo dele. Como muita desta escrita é constituída por reacções a estímulos contemporâneos, em vez de uma soma de individualidades, (cada uma a acumular a sua mixórdia) o que temos uma espécie de editorial comunitário permanente, em que a escrita diária é transformada num modo descentralizado de reacção institucional. A diferença de categoria entre o Zibaldone e, por exemplo, um blog ou um feed do Twitter, é o seu divórcio completo do presentismo. Leopardi estava envolvido num diálogo uni-direccional, ouvindo exclusivamente os que já morreram, e falando exclusivamente para os que ainda não tinham nascido..A última entrada no diário é de 4 de Dezembro de 1832, e diz que o ser humano fica sempre estupefacto quando descobre que não é uma excepção, e que no seu caso "também se aplicam as regras gerais". A maior anomalia literária do séc. XIX chegou ao fim convencida de que, num aspecto fundamental, talvez fosse um objecto igual aos outros, e não se pode dizer que estivesse totalmente errado.. Escreve de acordo com a antiga ortografia