Assim que acabou de ver o Cowspiracy - o famoso documentário sobre a pegada ecológica da agropecuária -, Rita Oliveira, de 18 anos, enviou uma mensagem à mãe: "Tornei-me vegana. Nunca mais como carne." Já não consumia leite nem derivados, mas há oito meses resolveu também eliminar a carne, o peixe e os ovos da alimentação. Como ser vegano é mais do que mudar o que está no prato, excluiu do seu dia-a-dia todos os produtos de origem animal, do vestuário aos cosméticos. "Falamos à noite", respondeu-lhe Maria José Simão.."Fiquei preocupada, porque tive receio que pudesse pôr em causa a saúde. Não sabia o que podemos ir buscar a cada alimento. Mas não podemos olhar com palas. Fui procurando informação. E fomos tendo discussões, umas mais acesas do que outras", recorda a bancária, de 45 anos. O pai, Carlos Granja, de 43, reconhece que gosta "de picar" a filha. "Não é por não ficar orgulhoso com a opção dela, mas faço-o para ver se os argumentos dela são refletidos", explica o professor bibliotecário..Em Portugal, é estimado que existam 120 mil pessoas a seguir um regime alimentar vegetariano, metade das quais têm uma alimentação vegana(100% vegetal). Há casos em que é uma opção familiar, mas, muitas vezes, é uma escolha dos filhos, que gera preocupação nos pais. Ao DN, a bastonária da Ordem dos Nutricionistas diz que "se excluir todos os alimentos de origem animal, a alimentação coloca algumas preocupações". "Não estou a dizer que não é possível acautelar todas as necessidades nutricionais, mas leva a que se tenha de ter algumas cautelas com alguns nutrientes. Não se colocando contra, se for o caso, os pais têm de ter um papel ativo e pedagógico", frisa Alexandra Bento..Rita Oliveira reconhece que os pais foram muito recetivos: "Conheço pessoas que se dissessem isso aos pais, seria um drama." Neste caso, não houve pânico. Pelo contrário. A não ser que surja "um desejo extremo de frango de churrasco", os pais acabam por comer as refeições veganas cozinhadas pela Rita ou pela mãe. Tal como a irmã mais nova, que entretanto também se tornou vegana. "Fui ao Porto com a minha irmã ver um documentário que me fez abrir os olhos. O que mais me chocou até foram os peixes. Fomos comer sushi uma última vez e tornei-me vegana", conta Clara, de 16 anos. Para estes pais é essencial, no entanto, garantir o acompanhamento médico das filhas. "Se não houver impacto na saúde e elas quiserem, apoiamos.".Explicar aos mais velhos a decisão de se tornarem veganas é que foi mais difícil. Uma das avós, contam, até deixou de dormir quando soube que as netas não comiam carne nem peixe. Mas já se habituou à ideia. Para a família, ir às compras tornou-se uma atividade demorada, porque exige que leiam todos os rótulos, mas divertida. "Quando vejo coisas veganas em promoção, é como quando as fraldas delas estavam em promoção", atira Maria José..Mais novos aderem mais.Beatriz Batista, de 34 anos, tornou-se vegana em 2006, depois de a família ter adotado uma cadela. "Disse à minha mãe: não vou comer mais carne." Naquela altura, recorda a autora do blogue Sociedade Vegan, os pais ajudaram-na a fazer a transição. "Apesar de não terem seguido a minha opção, nunca criticaram. Eu não cozinhava, mas a minha mãe fazia a minha comida à parte. Até comprou utensílios próprios para cozinhar os meus pratos", afirma..Na opinião de Beatriz, "são os mais novos que estão a aderir mais ao veganismo, a passar isso aos irmãos e, por vezes, aos pais, criando uma comunidade". Ao DN, a autora do blogue conta que recebe sobretudo "contactos de miúdos novos, até aos 17 anos, e de pessoas com mais de 60 anos a pedir informações". No que diz respeito aos mais novos, considera que o interesse crescente pelo veganismo está relacionado "com o facto de passarem muito tempo nas redes sociais, a ver vídeos"..Bárbara Simões, de 22 anos, sempre adorou animais, e até chegou a equacionar seguir veterinária. Já era contra touradas, circos e o uso de peles, quando se começou a cruzar com o termo veganna internet. Passou um verão a investigar sobre as questões éticas, de saúde, ambientais. E tornou-sevegana há três anos. "Foi mesmo radical. No início foi complicado", reconhece a mãe, Sandra Simões, de 47 anos..O pai, Leonel Simões, de 44 anos, conta que surgiram muitas questões: "Será que esta alimentação corresponde às suas necessidades? Será que não vai provocar nenhuma carência?" Procuraram, desde logo, acompanhamento médico. "Só fiquei tranquila quando falei com o médico e ele não reagiu. Era um não assunto. Estava tudo bem com as análises", recorda Sandra..A mudança na alimentação foi "do dia para a noite", enquanto nas restantes áreas foi gradual. Bárbara continuou, por exemplo, a usar o calçado de pele até se estragar. "Quanto aos produtos de beleza, foi muito fácil arranjar alternativas nos supermercados ou lojas da especialidade." Nos meses seguintes, a irmã, Adriana, agora com 14 anos, "ouvia-a falar sobre o sofrimento animal, sobre o que faziam aos animais". "Um dia encontrei a Bárbara a chorar em frente à televisão, e aquilo mexeu comigo. Decidi tornar-me vegana." Até então, revela a mãe, Adriana recusava-se a comer alface, cenoura, brócolos, pepinos, entre muitos outros vegetais..Adriana tinha 11 anos, o que aumentou a preocupação dos pais. "Surgiram dúvidas. Mas, aos poucos, fomos percebendo que a alimentação tradicional não é a única adequada ao crescimento. Aliás, aquilo que elas comem até terá muito menos impacto na saúde do que o que nós comemos", sublinha Leonel..Tal como o DN constatou, Sandra Gomes Silva, nutricionista e vegetariana, diz que "na maioria das vezes, os jovens mudam para uma alimentação mais vegetal por motivos éticos, muitas vezes depois de conversas com os pares, ou de terem visto um determinado documentário ou artigo". Confrontadas com isso, a autora do blogue O Vegetariano adianta que "muitas famílias acabam por mudar a alimentação total ou parcialmente"..Desde que as filhas alteraram o padrão de alimentação, Leonel come "90% de peixe e apenas 10% de carne". E Sandra deixou mesmo de comer carne. "Mas custa-me muito cortar a cabeça ao peixe. Penso: Porque faço isto?" Prepara refeições com os substitutos da carne e do peixe para a filha mais nova - seitan, tofu, soja -, enquanto Bárbara evita ao máximo os processados. "Fico pelas frutas, legumes, leguminosas, cereais. Há tantas formas de comer vegana", frisa a estudante de mestrado de Tradução Científica e ativista da causa animal..A preocupação com défices nutricionais.Uma das maiores preocupações dos pais é, segundo Sandra Silva, que exista algum tipo de défice em termos nutricionais. "Procuram-me para analisar a alimentação e os suplementos que os filhos tomam, para garantir que está tudo bem", afirma a nutricionista. Tudo o que "é novo traz muitas dúvidas", mas, frisa, "os défices nutricionais podem ocorrer em qualquer padrão alimentar"..Com uma alimentação vegana, Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas, destaca que é necessário ter "particular atenção à ingestão de proteína, ácidos gordos essenciais, ferro, zinco, cálcio, iodo, vitamina D e vitamina B12"..As proteínas, por exemplo, deixam de ser um problema se "as leguminosas forem consumidas juntamente com os cereais, que fornecem os aminoácidos necessários para a síntese proteica". Se for dada preferência a gorduras como o azeite e houver consumo de frutos gordos, "acautelamos a presença de ácidos gordos essenciais". "Quanto ao ferro, é aconselhável ter uma boa fonte deste nutriente (como as hortícolas de folha escura) associada a alimentos ricos em vitamina C (como a laranja ou o tomate), que auxiliam a sua absorção.".Como não há consumo de produtos lácteos, poderá haver, segundo Alexandra Bento, dificuldade em ter cálcio, portanto é necessário apostar "em hortícolas de cor escura, mas é necessário ter uma quantidade adequada de vitamina D no organismo para promover a sua absorção". Se houver carência desta vitamina, cuja fonte de excelência é o sol, pode ser necessária suplementação. Tal como para a vitamina B12..Além de fazerem análises clínicas com frequência, as jovens entrevistadas pelo DN tomam suplementos de vitamina B12. "Esta é a questão mais complicada, porque a vitamina B12 não existe naturalmente em produtos de origem vegetal. Por isso, é necessário recorrer a alimentos fortificados ou a suplementos." Por fim, "o problema do iodo resolve-se com a utilização de sal iodado e/ou algas"..Beatriz Rocha, de 18 anos, vegana há dois, faz análises de seis em seis meses. "Antes de ser vegana, fiz um estudo para ver o que tinha de ingerir para ter os nutrientes necessários. Até agora, tem estado tudo bem", conta ao DN a jovem, que também mudou a alimentação depois de ver o Cowspiracy. Para a mãe, Cláudia Sousa, a adaptação foi simples: "É a Beatriz quem cozinha. Se tivesse de ser eu, talvez fosse mais complicado, porque tinha de inventar receitas. Assim tornou-se mais fácil. Gosto muito de animais e admiro-a por ela ter esta força de vontade.".Durante a semana, Beatriz partilha as suas refeições veganas com a mãe, que ao fim de semana faz pratos com carne e peixe para o marido. Segundo a nutricionista Sandra Gomes, numa família onde só os filhos seguem uma alimentação vegetariana, não é obrigatório fazer dois pratos. E dá algumas sugestões: "Podemos ter arroz de feijão com legumes salteados e, para os pais, basta acrescentar carne ou peixe; um estufado de grão de bico, massa e legumes, com um pedaço de carne grelhada para os pais; ou um assado de legumes e grão de bico, com peixe assado à parte.".A nutricionista é coautora de várias publicações da Direção-Geral da Saúde sobre o tema, nomeadamente o manual Alimentação Vegetariana em Idade Escolar e as Linhas de Orientação para Uma Alimentação Vegetariana Saudável .