É na sua casa em São Martinho, freguesia do Funchal, que explica ser "a que fica perto do estádio dos Barreiros" e que engloba ainda os principais hotéis do litoral madeirense, que o médico Pedro Melvill de Araújo toma comigo este brunch via Zoom. "Bom dia", diz-me o também diretor do Rali Vinho da Madeira, erguendo uma chávena. "Café ou chá?", pergunto eu, a 972 quilómetros em linha reta, bebendo um expresso na redação do DN em Lisboa. Com um bom pedaço de Atlântico entre elas, a distância entre a capital da região autónoma e a capital do país é mais ou menos igual àquela entre Lisboa e Barcelona. Fico a saber que Pedro optou pelo chá. E confessando eu só uma vez ter visitado a belíssima ilha da Madeira pergunto onde, se este brunch limitado pela pandemia tivesse sido possível mesmo no Funchal, estaríamos agora. "Numa pastelaria engraçada que fica na estrada mesmo em frente ao Hotel Reid"s. Chama-se Petit-Four, como os bolinhos franceses, e é de um tio meu, José Henrique Cunha, que já tem 80 anos mas ainda está bem ativo", responde. Fica combinado um lanche a sério um dia destes na pastelaria vizinha do mais famoso hotel da ilha, cujo nome vem de uma família escocesa que no século XIX comerciava vinho Madeira, o tal que até serviu para Thomas Jefferson e os outros signatários em 1776 da Declaração de Independência dos Estados Unidos brindarem. E por falar em figuras históricas, Winston Churchill costumava ficar no Reid"s quando vinha à Madeira para descansar e pintar..CitaçãocitacaoDas figuras políticas madeirenses diz ter "grande admiração pelo dr. Alberto João Jardim".E explica que no antigo presidente do governo regional sempre lhe surpreendeu "a cultura muito acima da média e a facilidade com que falava de um tema, adaptando as palavras consoante fosse um doutor ou um agricultor.Com total naturalidade. Esse dom vi também em Mário Soares".. Conheci Pedro, o Dr. Melvill de Araújo, quando um dia me propôs publicar um artigo de opinião no DN. Era (é) colunista do Diário de Notícias da Madeira e disse-me gostar de ser publicado também num jornal de âmbito nacional. E assim aconteceu dessa vez e mais algumas desde então, a última já em 2021, quando saiu nas nossas páginas um artigo seu sobre as vacinas (noutras vezes chegou a ser sobre política). Mas Pedro já surgiu no DN numa outra condição, como fonte de artigos de ralis, como em janeiro do ano passado, quando morreu no Dakar, realizado na Arábia Saudita, o piloto português Paulo Gonçalves, e o madeirense ajudou a perceber os contornos da tragédia. O médico do Funchal tem um longuíssimo historial de comissário desportivo da Federação Internacional do Automóvel, a FIA, com sede em Paris. O apelido Melvill faz-me imaginar um qualquer antepassado britânico instalado na ilha em séculos remotos, como William Reid, o do hotel, mas afinal a história familiar deste funchalense nascido a 19 de maio de 1954, a caminho dos 67 anos, portanto, é um pouco diferente, como ele próprio conta: "O nome Melvill vem da minha avó inglesa, mãe do meu pai. O meu avô foi jovem para Inglaterra, estudar Engenharia, e voltou de lá com uma inglesa." Diz que não chegou a conhecer essa avó, mas sabe pelas memórias familiares que ela aprendeu a falar português e se integrou bem na sociedade local. Avô engenheiro, pai advogado e mãe professora, os médicos à família só chegaram na geração do próprio Pedro, pois são cinco irmãos e além dele há outro que seguiu Medicina. Para já não há seguidores da profissão nas gerações mais novas. Tem duas filhas e dois netos. Aposentado do serviço público, continua a com clínica aberta. É anatomopatologista, designação para a qual peço decifração. Como bom comunicador que é, Pedro não hesita: "Está a ver os testes papanicolau? Faço em laboratório o estudo das células recolhidas." Foi por causa do curso de Medicina que descobriu verdadeiramente Lisboa. Antes tinha vivido em criança na capital com os pais, e só foi nascer ao Funchal porque a mãe queria estar perto da família na hora do parto ("a minha filha que vive em Itália fez o mesmo quando nasceu o meu neto", conta). Mas os tempos na universidade acabaram por fazer acalmar uma outra paixão, a dos carros, que tinha ganho do pai ainda muito jovem. "Chegou a ser presidente do Club de Sports da Madeira, sim Sports, que organizava a Volta à Ilha da Madeira", diz Pedro sobre o pai. Quanto ao meu convidado, houve uns bons anos (1973-1982) em que foi copiloto de ralis, competindo na Madeira e também numa prova nas Canárias, tudo muito limitado por causa dos custos do transporte do carro, "os tais custos da insularidade, nesta matéria como noutras". Se se perdeu um copiloto para se ganhar um médico, a verdade é que os carros não desapareceram, nem podiam, da vida de Pedro. Tornou-se dirigente, o que é mais compatível com uma carreira paralela de médico, e desde 2004 é diretor do Rali Vinho da Madeira, que se realizou pela última vez em 2020, em agosto, quando a covid-19 parecia dar algumas tréguas. "Veremos neste ano." Como comissário desportivo da FIA, conheceu o Dakar já na sua fase sul-americana (o clássico Paris-Dakar de França até ao Senegal acabou por causa do terrorismo islâmico no Sara) e agora acompanha-o na versão Península Arábica. Em 2020 foi mesmo o presidente do colégio de comissários da FIA na tal prova em que morreu o piloto português. Neste ano a prova foi de novo em janeiro, mas Pedro acabou por não ir dados os constrangimentos de viagens gerados pela pandemia. Comento que já visitei a Arábia Saudita, na altura ainda com as mulheres proibidas de conduzir, e Pedro responde-me que apesar de toda a política de reformas que está a ser feita no reino lhe custou a questão da situação feminina. "Não tenho problemas nenhuns em aceitar as diferenças culturais quando se trata da proibição de comer carne de porco ou de beber álcool, mas faz-me muita confusão as mulheres todas tapadas", diz. O chá e o café já desapareceram das nossas chávenas, mas a conversa continua fluida. Aproveito o mote dos direitos femininos e pergunto como é a competição entre homens e mulheres nos ralis, em que não há provas separadas. "Temos grandes pilotos que são mulheres. Toda a gente se recorda certamente da Michèlle Mouton, que ganhou várias provas no início dos anos de 1980. Esteve muito bem no Rally de Portugal. E destaco também a Jutta Kleinschmidt, que ganhou um Dakar há uns anos. O que conta não é a força, é saber guiar, saber estar na estrada. Se não há mais mulheres a ganhar é porque são ainda poucas a competir comparado com o número de homens." Marku Allen, Hannu Mikkola, Sébastien Loeb, Carlos Sainz, são muitos os grandes nomes que Pedro viu competir e que admira, mesmo que por vezes a atitude não seja a melhor. "O Loeb, por exemplo, é fantástico a conduzir, mas no trato pessoal é pouco simpático, ensimesmado. Já o Sainz, apesar de todo nariz no ar, sempre foi muito simpático comigo, acenando se me vê ao longe até", destaca este veterano dos ralis.. Está a chegar à hora da despedida. Fico a saber que apesar de gostar de intervir através da opinião publicada, Pedro nunca teve atividade política partidária. "Nem a procurei", sublinha. Admite ser uma figura conhecida na Madeira e que a crónica mensal que escreve desde 2013 tem algum impacto: "Algumas caem bem, outras nem por isso", nota, com notável à vontade. Das figuras políticas madeirenses diz ter "grande admiração pelo Dr. Alberto João Jardim", com quem nem sempre concordou. E explica que no antigo presidente do governo regional lhe surpreendia "a cultura muito acima da média e a facilidade com que falava de um tema, adaptando as palavras consoante fosse um doutor ou um agricultor. Com total naturalidade. Esse dom vi também em Mário Soares".. Sobre a resposta atual à pandemia, evita julgamentos definitivos de quem governa, "pois é tudo totalmente novo. Abrir ou fechar, confinar ou não, é um debate não só cá mas também lá fora". Critica é haver demasiados "especialistas espontâneos que dão opinião pessoal como se fosse uma evidência", e lamenta que se esteja a comunicar menos bem a realidade aos portugueses. Pessoalmente tem tudo muitos cuidados, incluindo na clínica, por si e pelos pacientes. Por falar em portugueses, como é isso de ser madeirense e português? "É como ser transmontano e português ou algarvio e português", responde Pedro, que nota que o português hoje mais célebre é um filho da Madeira, Cristiano Ronaldo, "muito bem visto cá na ilha pela forma como tem sabido ser homem e estrela do futebol".. Nas suas viagens, tem sentido que isto de ser português é muito forte até quando se vive longe há muitos anos, e terminamos o nosso brunch via Zoom como um episódio: "Num ano, no Chile, no meio do deserto onde passava o rali, vi uma bandeira portuguesa. Era um português que vivia no Chile, ali tinha casado e tido filhos, e ali estavam todos. No ano seguinte, de novo o Dakar a passar no Chile, e vejo-o de novo com a bandeira e a acenar-me entusiasmado, só para falarmos um pouco. Ninguém fica indiferente a isto. Uma pessoa sente-se mesmo portuguesa quando acontece algo assim."
É na sua casa em São Martinho, freguesia do Funchal, que explica ser "a que fica perto do estádio dos Barreiros" e que engloba ainda os principais hotéis do litoral madeirense, que o médico Pedro Melvill de Araújo toma comigo este brunch via Zoom. "Bom dia", diz-me o também diretor do Rali Vinho da Madeira, erguendo uma chávena. "Café ou chá?", pergunto eu, a 972 quilómetros em linha reta, bebendo um expresso na redação do DN em Lisboa. Com um bom pedaço de Atlântico entre elas, a distância entre a capital da região autónoma e a capital do país é mais ou menos igual àquela entre Lisboa e Barcelona. Fico a saber que Pedro optou pelo chá. E confessando eu só uma vez ter visitado a belíssima ilha da Madeira pergunto onde, se este brunch limitado pela pandemia tivesse sido possível mesmo no Funchal, estaríamos agora. "Numa pastelaria engraçada que fica na estrada mesmo em frente ao Hotel Reid"s. Chama-se Petit-Four, como os bolinhos franceses, e é de um tio meu, José Henrique Cunha, que já tem 80 anos mas ainda está bem ativo", responde. Fica combinado um lanche a sério um dia destes na pastelaria vizinha do mais famoso hotel da ilha, cujo nome vem de uma família escocesa que no século XIX comerciava vinho Madeira, o tal que até serviu para Thomas Jefferson e os outros signatários em 1776 da Declaração de Independência dos Estados Unidos brindarem. E por falar em figuras históricas, Winston Churchill costumava ficar no Reid"s quando vinha à Madeira para descansar e pintar..CitaçãocitacaoDas figuras políticas madeirenses diz ter "grande admiração pelo dr. Alberto João Jardim".E explica que no antigo presidente do governo regional sempre lhe surpreendeu "a cultura muito acima da média e a facilidade com que falava de um tema, adaptando as palavras consoante fosse um doutor ou um agricultor.Com total naturalidade. Esse dom vi também em Mário Soares".. Conheci Pedro, o Dr. Melvill de Araújo, quando um dia me propôs publicar um artigo de opinião no DN. Era (é) colunista do Diário de Notícias da Madeira e disse-me gostar de ser publicado também num jornal de âmbito nacional. E assim aconteceu dessa vez e mais algumas desde então, a última já em 2021, quando saiu nas nossas páginas um artigo seu sobre as vacinas (noutras vezes chegou a ser sobre política). Mas Pedro já surgiu no DN numa outra condição, como fonte de artigos de ralis, como em janeiro do ano passado, quando morreu no Dakar, realizado na Arábia Saudita, o piloto português Paulo Gonçalves, e o madeirense ajudou a perceber os contornos da tragédia. O médico do Funchal tem um longuíssimo historial de comissário desportivo da Federação Internacional do Automóvel, a FIA, com sede em Paris. O apelido Melvill faz-me imaginar um qualquer antepassado britânico instalado na ilha em séculos remotos, como William Reid, o do hotel, mas afinal a história familiar deste funchalense nascido a 19 de maio de 1954, a caminho dos 67 anos, portanto, é um pouco diferente, como ele próprio conta: "O nome Melvill vem da minha avó inglesa, mãe do meu pai. O meu avô foi jovem para Inglaterra, estudar Engenharia, e voltou de lá com uma inglesa." Diz que não chegou a conhecer essa avó, mas sabe pelas memórias familiares que ela aprendeu a falar português e se integrou bem na sociedade local. Avô engenheiro, pai advogado e mãe professora, os médicos à família só chegaram na geração do próprio Pedro, pois são cinco irmãos e além dele há outro que seguiu Medicina. Para já não há seguidores da profissão nas gerações mais novas. Tem duas filhas e dois netos. Aposentado do serviço público, continua a com clínica aberta. É anatomopatologista, designação para a qual peço decifração. Como bom comunicador que é, Pedro não hesita: "Está a ver os testes papanicolau? Faço em laboratório o estudo das células recolhidas." Foi por causa do curso de Medicina que descobriu verdadeiramente Lisboa. Antes tinha vivido em criança na capital com os pais, e só foi nascer ao Funchal porque a mãe queria estar perto da família na hora do parto ("a minha filha que vive em Itália fez o mesmo quando nasceu o meu neto", conta). Mas os tempos na universidade acabaram por fazer acalmar uma outra paixão, a dos carros, que tinha ganho do pai ainda muito jovem. "Chegou a ser presidente do Club de Sports da Madeira, sim Sports, que organizava a Volta à Ilha da Madeira", diz Pedro sobre o pai. Quanto ao meu convidado, houve uns bons anos (1973-1982) em que foi copiloto de ralis, competindo na Madeira e também numa prova nas Canárias, tudo muito limitado por causa dos custos do transporte do carro, "os tais custos da insularidade, nesta matéria como noutras". Se se perdeu um copiloto para se ganhar um médico, a verdade é que os carros não desapareceram, nem podiam, da vida de Pedro. Tornou-se dirigente, o que é mais compatível com uma carreira paralela de médico, e desde 2004 é diretor do Rali Vinho da Madeira, que se realizou pela última vez em 2020, em agosto, quando a covid-19 parecia dar algumas tréguas. "Veremos neste ano." Como comissário desportivo da FIA, conheceu o Dakar já na sua fase sul-americana (o clássico Paris-Dakar de França até ao Senegal acabou por causa do terrorismo islâmico no Sara) e agora acompanha-o na versão Península Arábica. Em 2020 foi mesmo o presidente do colégio de comissários da FIA na tal prova em que morreu o piloto português. Neste ano a prova foi de novo em janeiro, mas Pedro acabou por não ir dados os constrangimentos de viagens gerados pela pandemia. Comento que já visitei a Arábia Saudita, na altura ainda com as mulheres proibidas de conduzir, e Pedro responde-me que apesar de toda a política de reformas que está a ser feita no reino lhe custou a questão da situação feminina. "Não tenho problemas nenhuns em aceitar as diferenças culturais quando se trata da proibição de comer carne de porco ou de beber álcool, mas faz-me muita confusão as mulheres todas tapadas", diz. O chá e o café já desapareceram das nossas chávenas, mas a conversa continua fluida. Aproveito o mote dos direitos femininos e pergunto como é a competição entre homens e mulheres nos ralis, em que não há provas separadas. "Temos grandes pilotos que são mulheres. Toda a gente se recorda certamente da Michèlle Mouton, que ganhou várias provas no início dos anos de 1980. Esteve muito bem no Rally de Portugal. E destaco também a Jutta Kleinschmidt, que ganhou um Dakar há uns anos. O que conta não é a força, é saber guiar, saber estar na estrada. Se não há mais mulheres a ganhar é porque são ainda poucas a competir comparado com o número de homens." Marku Allen, Hannu Mikkola, Sébastien Loeb, Carlos Sainz, são muitos os grandes nomes que Pedro viu competir e que admira, mesmo que por vezes a atitude não seja a melhor. "O Loeb, por exemplo, é fantástico a conduzir, mas no trato pessoal é pouco simpático, ensimesmado. Já o Sainz, apesar de todo nariz no ar, sempre foi muito simpático comigo, acenando se me vê ao longe até", destaca este veterano dos ralis.. Está a chegar à hora da despedida. Fico a saber que apesar de gostar de intervir através da opinião publicada, Pedro nunca teve atividade política partidária. "Nem a procurei", sublinha. Admite ser uma figura conhecida na Madeira e que a crónica mensal que escreve desde 2013 tem algum impacto: "Algumas caem bem, outras nem por isso", nota, com notável à vontade. Das figuras políticas madeirenses diz ter "grande admiração pelo Dr. Alberto João Jardim", com quem nem sempre concordou. E explica que no antigo presidente do governo regional lhe surpreendia "a cultura muito acima da média e a facilidade com que falava de um tema, adaptando as palavras consoante fosse um doutor ou um agricultor. Com total naturalidade. Esse dom vi também em Mário Soares".. Sobre a resposta atual à pandemia, evita julgamentos definitivos de quem governa, "pois é tudo totalmente novo. Abrir ou fechar, confinar ou não, é um debate não só cá mas também lá fora". Critica é haver demasiados "especialistas espontâneos que dão opinião pessoal como se fosse uma evidência", e lamenta que se esteja a comunicar menos bem a realidade aos portugueses. Pessoalmente tem tudo muitos cuidados, incluindo na clínica, por si e pelos pacientes. Por falar em portugueses, como é isso de ser madeirense e português? "É como ser transmontano e português ou algarvio e português", responde Pedro, que nota que o português hoje mais célebre é um filho da Madeira, Cristiano Ronaldo, "muito bem visto cá na ilha pela forma como tem sabido ser homem e estrela do futebol".. Nas suas viagens, tem sentido que isto de ser português é muito forte até quando se vive longe há muitos anos, e terminamos o nosso brunch via Zoom como um episódio: "Num ano, no Chile, no meio do deserto onde passava o rali, vi uma bandeira portuguesa. Era um português que vivia no Chile, ali tinha casado e tido filhos, e ali estavam todos. No ano seguinte, de novo o Dakar a passar no Chile, e vejo-o de novo com a bandeira e a acenar-me entusiasmado, só para falarmos um pouco. Ninguém fica indiferente a isto. Uma pessoa sente-se mesmo portuguesa quando acontece algo assim."