O manto diáfano da fantasia

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Oexercício da política do Big Stick que a governação dos EUA se considerou obrigada a exercer, quer no continente americano quer no Próximo Oriente, terra predominantemente em vista, segundo as declarações frequentes na última metade do século XX, é hoje objeto de minuciosa indagação pelos historiadores que vão dispondo de acesso às fontes e esforçando-se por não violar a ética da profissão. Kissinger (Dear Henry) foi exímio em tentar cobrir sempre as intervenções mais criticáveis na distinção entre o "agressivo totalitarismo" e "outros governos" (in Luiz Bandeira), nesta pedagogia ficando envolvidos a Argentina, a Nicarágua, a Guatemala, o Chile, o Uruguai, a Argentina, o regime da Pérsia, não faltando a invocação frequente dos direitos humanos, a exigir proteção. Entre os apelos a uma política de autenticidade encontra-se, julgo que com justiça, a decisão do Congresso dos EUA, depois da questão do Chile, exigindo a apresentação anual do Human Rights Report e um serviço de Direitos Humanos e Assuntos Humanitários.

Nesta atitude de retirar o manto diáfano da fantasia à função política da autenticidade, parece oportuno recordar, sem ignorar a impecabilidade violada pela informação dos factos, a intervenção de Carter, logo na candidatura à Presidência da República pelo Partido Democrático, no sentido de reformular a política externa, severamente atingida pela propaganda da URSS, "não apenas na dimensão do arsenal mas na nobreza das ideias". Por isso, defensor da paz, designadamente consciente, com boa leitura, dos movimentos muçulmanos, declarava que "Paz não é apenas a ausência de guerra. Paz é ação para eliminar o terrorismo internacional. Paz é um esforço incessante para precaver os direitos humanos. Paz é a demonstrada combinação entre força e boa vontade. Nós rezaremos pela paz e queremos trabalhar pela paz, até que tenhamos retirado de todas as nações para sempre a ameaça da destruição nuclear" (1976). De novo os factos desobedeceram à vontade, com acontecimentos como foram a questão dos reféns americanos em Teerão, para depois acontecer o desastre do Iraque, que consta, ainda servira de intermediário na venda de armas ao Irão com a cobertura de Israel, tudo animando versões noticiosas, ou confiáveis, ou manipuladas, e repetidamente afetando a reputação de responsáveis políticos, ou serviços de informação, vigilância, intervenção. A viagem do atual presidente dos EUA que incluiu a visita à Arábia Saudita e terminou no Vaticano é talvez um primeiro esforço pessoal para ganhar o estatuto de estadista na opinião pública, especialmente a doméstica, mas o teor das intervenções não parecem conseguir que as palavras sejam impulsionadoras de um processo que lhe confira o estatuto de que a grave crise internacional espera dos responsáveis. Parece apropriado insistir em que os povos muçulmanos vejam os seus governos executar uma ação eficaz contra os terroristas, conduzindo as suas populações à tranquilidade e a substituir a decisão de emigrar, que tanto embaraça os europeus, pela de regressar às suas pátrias de origens. Mas é difícil admitir que seja apropriado e eficaz reconhecer com aparente modéstia que não podem os EUA assumir isoladamente a tarefa, mas é menos aceitável acrescentar que podem fornecer armamento fabricado pelo seu complexo militar-industrial, um conceito que não é corolário da confissão dolorosa de Eisenhower no seu famoso discurso de despedida. Não é uma novidade que seja ignorada pelos analistas das guerras passadas, mas não cabe coerentemente na definição acolhedora do conceito de paz projetada. Nem aviso eficaz para a Coreia do Norte, que procedeu ao lançamento de um novo míssil justamente na altura do discurso presidencial. Nem parece útil imaginar que o terrorismo muçulmano não tem a sua principal causa de perigo agudo no facto de, abusivamente, ter incluído elementos da fé religiosa na formação dos executores. Os esperados conselhos recíprocos, como se esperou na reunião da NATO, são indispensáveis, mas assumir o risco na sua dimensão, e não apenas pela repartição de custos, parece mais mobilizador em face da realidade, de novo dolorosamente manifestada no atentado de Manchester, acompanhado da indignação britânica quanto à cooperação dos serviços de informação americanos. A situação de perigo agudo mundial, que junta a excessiva dispersão das armas atómicas com o terrorismo anárquico, definitivamente exige que o conceito de "mundo único" não seja envolto em descabidos critérios de gestão empresarial, que, na situação agravada em que o mundo vive, são uma versão inadmissível do manto diáfano da

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