Como afirmei no sábado, o doutor Mário Soares foi o "Patriarca da nossa Democracia". Ninguém a encarnou melhor do que ele, primeiro, e com todo o vigor, contra a ditadura de direita e, em 1975, com a mesma combatividade e coragem física, contra uma tentativa de ditadura de esquerda, de modelo bem conhecido..Três vezes primeiro-ministro e dez anos Presidente da República, teve a correta intuição de fundar o Partido Socialista em 1973, de promover o gigantesco comício da Alameda em 1975. E de apresentar o pedido de adesão de Portugal à CEE em 1977..Foi firme e determinado no exílio, em São Tomé e Príncipe, e depois em França; nos primeiros anos da nossa consolidação democrática; e na difícil Revisão Constitucional de 1982, durante a qual me disse, em sua casa: "Estão a querer virar o PS contra mim; acho que não conseguirão, mas, mesmo que me vençam, eu votarei sozinho, com a AD, o fim do Conselho da Revolução." Não que ele fosse contra os militares de Abril, bem pelo contrário: sempre os elogiou e destacou como mereciam. Mas era favorável a uma "democracia civilista", onde a força das armas não governa, antes deve submeter-se ao poder político democrático, legitimado pela força dos votos..Mário Soares foi, também, um estadista republicano e laico (confessadamente agnóstico), que manteve sempre as melhores relações com a Igreja Católica, recusando-se, nesse ponto, a repetir os erros da I República. Humanista e tolerante, dava-se bem com todos os políticos, empresários e sindicalistas, mostrando ao país a arte de conviver em paz e na liberdade com quem não pensa como nós..Era um homem de cultura. Sabia imenso de história, de pintura e de várias literaturas. Escreveu e publicou dezenas de livros com o seu pensamento - dos quais me permito destacar, antes de 1974, o Portugal Amordaçado e, depois de sair de Belém, Um Político Confessa-Se. E instituiu, em boa hora, a Fundação Mário Soares, que tem vindo a recolher, tratar e catalogar, não apenas o seu arquivo pessoal, mas também inúmeros espólios documentais relativos à I República, ao 25 de Abril à descolonização..Foi, provavelmente, o maior político português do século XX: porque soube lutar sem perder a esperança, ganhar sem cair na arrogância e, às vezes, perder, sempre com desportivismo, declarando que "tanto se serve o país no poder como na oposição"..Ele e a senhora Dra. Maria de Jesus foram, para com a minha mulher e para comigo - bem como para com Amaro da Costa, Basílio Horta, Rui Pena, Sá Machado, Emídio Pinheiro e tantos outros -, inexcedíveis de atenções, gentilezas e estímulos, que nunca poderemos esquecer. Portugal deve-lhe imenso. A Europa também e, de modo geral, todos os democratas. E o povo, com quem ele se identificava naturalmente como poucos, e que - na área dele e não só - o adorava e dava tudo por ele. Quando íamos almoçar os dois a restaurantes lisboetas típicos (na Sé, em Alfama ou no Bairro Alto), era impressionante observar a sua popularidade e o carinho do "povo miúdo" para com ele. Entre amigos, era um grande conversador, um inesquecível contador de histórias e, em suma, um excelente conviva..A nossa amizade começou em 1974 (já contei como, no 1.º volume das minhas Memórias) e durou mais de quarenta anos - revelando-se superior a todas as diferenças de formação e de pensamento, a todos os episódios políticos menos agradáveis e, mesmo, mais forte do que muitos meses de combate político eleitoral, duro e difícil para ambos. Mas que peso tem isso perante uma amizade sincera e uma permanente "cumplicidade democrática"?.Mário Soares não fez de todos nós socialistas, mas tornou-nos a todos melhores democratas. Por isso é o "pai fundador" do regime. E se Manuel Fernandes Tomás, principal arauto da revolução liberal do Porto, em 1820, pôde ser denominado "patriarca da liberdade", com muito mais fortes razões deve o Doutor Mário Soares ser considerado, no atual regime, "Patriarca da Democracia".