Há coisa de poucas semanas circulou a notícia de que Woody Allen estava a pensar em reformar-se do cinema. A suposta certeza, veiculada por uma entrevista a um jornal espanhol (La Vanguardia), era que tal aconteceria após terminar o seu 50.º filme, Wasp 22, um thriller que começa agora a ser rodado em Paris. No dia seguinte, ainda o anúncio de grande interesse mediático não tinha arrefecido nas redes sociais, surgia o desmentido por parte da assessoria de imprensa do realizador americano, que numa declaração ao IndieWire dizia que Allen nunca se referira à reforma na dita entrevista, mas antes a uma perda de vontade de fazer filmes, uma vez que hoje em dia estes estão condenados às plataformas de streaming - não nos admira que seja um cenário pouco apelativo para alguém afeiçoado às memórias da experiência da sala escura. Resumo do caso: as notícias da aposentadoria do realizador de Manhattan foram manifestamente exageradas..A vertente criativa que não se põe em causa no meio deste burburinho de diz que disse é a literária. E a prová-lo está aí Gravidade Zero, com chancela das Edições 70 (também responsável pelo anterior A Propósito de Nada), livro que no passado mês de junho motivou uma entrevista via Instagram Live conduzida pelo ator Alec Baldwin, a quem Allen confessou que já perdeu muita da emoção de fazer filmes - embora não tenha falado em reforma... - e que, aos 86 anos, está a sentir-se cada vez mais confortável em casa: a escrever..Gravidade Zero é a quinta coletânea de textos publicados de Woody Allen, depois de Para Acabar de Vez com a Cultura (1971), Sem Penas (1975), Efeitos Secundários (1980) e Pura Anarquia (2007), como os títulos indicam, todos com edição portuguesa. O que é que contém? Quase duas dezenas de histórias curtas, oito delas apresentadas primeiro nas páginas da revista The New Yorker, e as restantes escritas expressamente para o livro. Como o próprio autor explica na referida conversa com Baldwin, trata-se de pequenas inspirações: "Não são ensaios nem contos, e na The New Yorker precisavam de um nome para isto, então chamaram-lhes casuals: algo casualmente escrito, algo para ler casualmente.".Seja como for, entre vacas com instinto assassino, galinhas argumentistas, almofadas capazes de trazer a paz ao mundo, cavalos pintores e automóveis dados ao pensamento filosófico - já para não falar de dois judeus que reencarnam sob a forma de lagostas, prontos a vingar-se de Bernie Madoff, o rosto da maior fraude financeira de Wall Street -, há uma história mais extensa, tecnicamente um conto, no final, que remata Gravidade Zero com um toque de génio melancólico. Dir-se-ia que cada texto, lido pela ordem que se quiser (porque não depende do anterior nem do seguinte), vai libertando pepitas de ouro humorístico, que "apenas" confirmam Allen como um dos melhores comediantes contemporâneos, até desembocar numa brilhante short story com laivos autobiográficos. Mas já lá vamos..Antes, é curioso constatar que há uma estrutura algo simétrica nas histórias mais curtas. Estas partem muitas vezes de um apontamento noticioso e evoluem para um festim intelectual, tipicamente allenesco, entre referências doutas e nomes fictícios hilariantes que se mesclam numa prosa irresistível de tão empolada. A alternativa ao apontamento noticioso é, por exemplo, uma biografia. Temos aqui, a propósito, uma rábula com Warren Beatty, cuja mitologia em Hollywood Allen ironiza partindo da imensidão de casos amorosos relatados pelo respetivo biógrafo, e que pelas contas do comediante andará à volta das 12 mil mulheres - através do relato de uma delas ficamos a conhecer a rotina das relações sexuais desta estrela que é "uma combinação de Heathcliff e Secretariat" (este último, o famoso cavalo de corrida puro-sangue vencedor da tríplice coroa)..Entre os títulos alinhados no índice, há uma palavra familiar do universo de Allen que salta à vista do leitor, desde logo porque se repete em dois deles: Manhattan. A segunda vez é no tal conto que fecha Gravidade Zero. Chama-se Crescer em Manhattan e não podia representar melhor conclusão para um livro que, pelas vias mais extravagantes, reflete a experiência nova-iorquina..Na verdade, Crescer em Manhattan podia muito bem ser um filme de Woody Allen, sem tirar nem pôr. Percorrendo as suas sedutoras páginas, que parecem captar o rumor urbano e uma certa luz de fim de tarde em Park Avenue, deparamos com uma mistura de romantismo e incredulidade depositadas numa personagem, Jerry Sachs, que não é senão um alter ego de Allen, um jovem encantado com a ideia de Manhattan - aquela que lhe foi vendida pelos filmes clássicos de Hollywood - e que se casou demasiado cedo para poder lá viver..Entramos assim no ar dos seus dias, pela tradução de Jorge Lima: "Caminhava bastas vezes através de Central Park - gostava de sentar-se em determinado banco do lado poente do lago dos barcos à vela, e ficar a contemplar os apartamentos e penthouses da Quinta Avenida. Imaginava, então, as pessoas que aí viviam, perguntando-se se as suas vidas se assemelhariam de alguma forma às cenas [dos filmes] que o encantavam na sua infância. Haveria, nesse preciso momento, pessoas bonitas a travar diálogos inteligentes e a bebericar cocktails num cenário Cedric Gibbons?".Isto é puro Allen, puro prazer..Depois entra em cena o elemento romântico: a rapariga perfeita que fuma um cigarro sentada no mesmo banco em Central Park. Amor à primeira vista... Mas ainda assim este não passa a ser um conto sobre outra coisa que não a magia de uma educação vivencial de Manhattan. "Saber onde comprar os brownies mais saborosos", os melhores vinhos, e onde ficam "as drugstores abertas toda a noite". Não ter dúvidas de que o melhor esturjão é no West Side, no Barney Greengrass, que a melhor livraria para livros de mistério é a Murder Ink, e que para satisfazer as "insanas ânsias por cheesecake a meio da noite" a solução é o Turf na Broadway. Sem esquecer que, se o apetite oscila entre bifes e ostras, no primeiro caso vai-se ao Frank"s, no Harlem, no segundo, recomenda-se o Grand Central Station..Um dos aspetos que mais nos comove na descrição que Allen faz do seu borough predileto de Nova Iorque (sendo ele um rapaz de Brooklyn), é o modo como se consegue entrever o plano de um filme sob o efeito de determinada luz do dia, e o que ela provoca no seu espírito (que é o espírito da personagem), quando refletida no desenho dos prédios. Neste caso, o entardecer: "Dificilmente Nova Iorque ficaria mais adorável. Sentiu-se tomado de um sentimento de melancolia, uma melancolia típica de Manhattan, com a sua banda sonora de Tin Pan Alley a insinuar-se, entristecendo-o ao mesmo tempo que o deixava confortável. Gostava de se sentir agradavelmente imerso em melancolia, o que constituía uma contradição lógica, mas onde estava escrito que tudo pode ser explicado?".Conforto, melancolia, contradição lógica..Mas sobretudo, é preciso perceber que todas as nuances de Nova Iorque dependem da cor das estações do ano. Se neste conto de Gravidade Zero a primavera surge como o único tema em que Jerry Sachs e a mulher concordam (antes do divórcio), acrescentando ele que adora qualquer estação na "cidade da qual Larry Hart dissera ser talhada para um rapaz e uma rapariga", na autobiografia A Propósito de Nada esse fascínio das estações, e a melancolia nova-iorquina que elas avolumam num homenzinho munido de uma Olympia portátil, já eram uma espécie de atração fatal: "Por várias vezes (...), sentia-me nervoso com a possibilidade de um raio atravessar o vidro e atingir a minha máquina de escrever, transformando-me em barbecue, enquanto eu batia uma sátira maliciosa dos costumes contemporâneos. Tempestades de neve e de gelo eram uma experiência diferente, mas igualmente espantosa. Despertar numa manhã de inverno e ver cada centímetro de Central Park coberto de neve; a cidade, silenciosa e vazia. E talvez um carro dos bombeiros vermelho se destacasse, em contraste com o branco perfeito. Tanta coisa depende de um carro dos bombeiros vermelho face à neve de Central Park ao lado de galinhas brancas. Por aí. (...) Depois, bum, o verde está por todo o lado e a primavera chegou a Manhattan e em Central Park vemos os botões e as pétalas a abrirem-se e o ar cheira a nostalgia e queremos matar-nos. Porquê? Porque é demasiado belo para que consigamos lidar com aquilo; a glândula pineal segrega o Sumo Inenarrável da Melancolia.".Voltando aos moldes narrativos de Crescer em Manhattan, o final feliz não é garantido. Mas, justamente, não será a doce melancolia nova-iorquina, depois da excitação romântica, que nos impele para as histórias de Allen? Que continue a escrever e a realizar o mais que lhe seja possível, antes de, quem sabe, reencarnar sob a forma de uma lagosta - oportunidade para um tête-à-tête com esses crustáceos que lhe causam tanta repugnância na memorável cena de cozinha de Annie Hall, ao lado de uma divertidíssima Diane Keaton....Gravidade Zero Woody Allen Edições 70 216 páginas