A moradia na pequena vila italiana de Casteldaccia parecia ter sido desenhada para a máfia: escondida entre muros de cimento (baixos, mas que a tornam mais discreta) e vegetação, com o seu próprio cais - o cenário ideal para uma fuga rápida às autoridades. Durante cerca de duas décadas, terá servido o maior grupo mafioso da Sicília, também conhecido por Cosa Nostra, que ali orquestrou vários assassinatos de políticos e polícias. Terá ficado vazia durante 25 anos, mas entretanto o empresário Gianluca Calì, de 46 anos, quis ressuscitar este espaço e construir uma residência turística, conta o The Guardian. Até começar a ser ameaçado, Calì desconhecia a história por detrás desta casa, que entretanto tornou um manifesto público anti-máfia..As ameaças começaram a surgir no final de 2010, meses antes de ter adquirido a moradia, assombrada pelas memórias da máfia italiana. Calì é proprietário de uma concessionária de carros de sucesso (ao qual a máfia não ficou indiferente). Um dia, durante um ano de grandes vendas, o irmão do empresário recebeu uma visita no local de trabalho. "Dois membros da família mafiosa local vieram ao nosso escritório e disseram ao meu irmão que precisavam de dinheiro para pagar as despesas legais do clã. Foi um pedido de dinheiro para proteção. Nós recusámos e, logo depois, eles incendiaram o primeiro carro.".O primeiro de cerca de dez carros incendiados, contabiliza. Os incidentes foram imediatamente reportados à polícia, embora sem quaisquer consequências..A casa onde foram orquestrados assassinatos em série.Algum tempo passado desde as primeiras ameaças, decidiu investir os seus lucros numa moradia na costa de Casteldaccia, que tinha sido colocada a leilão, cujo antigo proprietário era Michele "O Papa" Greco - chefe dos Cosa Nostra e também de um grupo de mafiosos conhecidos como a Comissão da Máfia da Sicília. Este representante da máfia comprou o terreno em 1965 e, dois anos depois, edificou ali uma residência de férias. Mesmo ao lado da moradia de dois outros chefes dos Cosa Nostra: Stefano Bontade e Pietro Vernengo (ou "Bazooka Eyes"), conhecido por ter cometido múltiplos homicídios em que dissolvia as suas vítimas em ácido..Nesta residência, Greco terá planeado assassinatos, como o de Pio La Torre, um líder do partido comunista italiano que propôs uma lei para criminalizar associações mafiosas, e do general Carlo Alberto Dalla Chiesa, enviado para combater a máfia..Mal o novo proprietário, Gianluca Calì, sabia a história que este espaço guardava. Mas, quando soube, nada o fez dissuadir da ideia de ali investir. "A polícia alertou-me que, se eu voltasse atrás, deixando a casa nas mãos dos herdeiros de Greco, poderia ser acusado de favorecer a máfia", lembra. Mas os herdeiros não demoraram a chegar com ameaças. Numa "ameaça flagrante", procuraram Calì para lhe dizer "que seria melhor se saísse do caminho". "Foi quando eu percebi: eu já tinha ultrapassado os primeiros ataques criminosos por me recusar a pagar o dinheiro da proteção e estava determinado a não deixá-los vencer. Decidi então transformar a casa num museu anti-máfia e uma casa de férias para turistas", conta..Segundo o empresário, um chefe da máfia local, que agora é informador das autoridades, confessou que estava preparado para o matar, até ser preso. Por isso mesmo, desde aí que dorme com uma arma debaixo da sua almofada e só conduz carros blindados..24 quartos e toda a vigilância.Apesar dos receios, não desistiu da sua luta contra a máfia. E não o esconde: na entrada da moradia que está a remodelar, tem escrito "em casa, a máfia perdeu". Entretanto, já ajudou inclusive a escrever um livro sobre a sua experiência, intitulado Eu não pago. A extraordinária história de Gianluca Maria Calì..As obras na residência, com 24 quartos, estão a semanas de estar concluídas. E o empresário não hesita em dizer que a segurança está garantida para todos os hóspedes que visitem o local, rodeado por dezenas de câmaras de segurança. "A única vez que alguém tentou invadir foi em 2014 e foi feita uma detenção logo no dia seguinte", diz, acrescentando que há polícias a vigiar a zona a toda a hora.."Não poderia estar menos preocupado com o que Greco deve estar no inferno a pensar sobre o que aconteceu com sua moradia", reitera. "Mas estou confiante de que, do céu, Falcone e Borsellino, assim como nessa foto, estarão às gargalhadas", diz, apontando para uma fotografia que guarda na sala. Nela estão presentes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, os dois magistrados assassinados em 1992 depois de terem coordenado uma investigação sobre a máfia siciliana, que levou à prisão de centenas de mafiosos.