No filme Pedro, o Louco (1965), de Jean-Luc Godard, Jean-Paul Belmondo apropria-se de algumas linhas de A Tempestade, de Shakespeare, dissertando sobre o sonho e o sono, transformando-as num novo jogo de espelhos. Diz ele: "Nós somos feitos de sonhos e os sonhos são feitos de nós.".João Botelho é um dos cineastas contemporâneos que poderia refazer essa máxima, substituindo "sonhos" por "palavras". Questão de infinitas ambivalências que, como bem sabemos, também pertence ao universo de Fernando Pessoa. Por alguma razão, Botelho arriscou fazer um filme a partir de O Livro do Desassossego, chamando-lhe Filme do Desassossego (2010). Agora, a saga prolonga-se através de José Saramago e da recriação desse romance admirável, obviamente pessoano, que é O Ano da Morte de Ricardo Reis..O conceito que serve de motor ao livro é desarmante: Ricardo Reis, heterónimo de Pessoa, terá vivido no Brasil, entre as rotinas da medicina e a sedução da poesia, regressando a Portugal por altura da morte do próprio Pessoa (30 de novembro de 1935). Como todos os genuínos conceitos, existe por si, sem necessidade de retoques ou racionalizações. Por isso mesmo, importa que o leitor, também espectador, não se deixe enganar. Como diz Saramago (ou, se quiserem, o seu Ricardo Reis), "o pior que têm os jornais é achar-se quem os faz autorizado a escrever sobre tudo, é atrever-se a pôr na cabeça dos outros ideias que possam servir na cabeça de todos" (pág. 101, ed. Porto Editora, 2019)..Botelho compreende que tal conceito, sendo visceralmente literário, não carece de ser "adaptado" ao cinema - o que importa é prolongá-lo, exponenciá-lo até ao máximo artifício, acolhê-lo no seu antinaturalismo e, por assumida contradição, filmá-lo como "coisa" natural. Porquê? Porque filmar, tal como escrever, é um exercício de cumplicidade com a fugacidade do tempo: "Não há resposta para o tempo, estamos nele e assistimos, nada mais" (pág. 381)..Como somos um país em que, não poucas vezes, se confunde a herança das obras e dos seus autores com o aparato das comemorações oficiais, importa referir que a grandeza de um filme como O Ano da Morte de Ricardo Reis não nasce de qualquer colagem aos nomes que a ele se colam. Essa grandeza é a do próprio cinema enquanto gesto criativo, capaz de relativizar o nosso conhecimento do mundo. Como? Filmando os encontros de Reis e Pessoa como puro acontecimento cinematográfico. Afinal de contas, o primeiro nunca existiu, tendo sido inventado pelo segundo, que, por curiosa pirueta narrativa, já morreu... Divertimento? Sim, com toda a musicalidade que a palavra pode envolver. Há em tudo isto um riso sereno, de comédia pudica, brincando com o ser e o não ser português, recusando qualquer forma preguiçosa de "ilustração" do património (literário ou não). Para Botelho, o que mais conta pertence por inteiro ao cinema, nasce do desejo de colocar numa mesma imagem o que, justamente, só pode existir como imagem: Reis e Pessoa..Ou seja, dois atores: Chico Diaz e Luís Lima Barreto. Pela sua identidade brasileira, o primeiro satisfaz a presença do sotaque que Pessoa sugere e Saramago explicita - entre distração e angústia, pressentimo-lo sempre à procura da pose exata para se adequar ao cenário a que regressou. O segundo interpreta Pessoa como o mais feliz dos fantasmas - a morte não passa de um ligeiro requebro literário e o cinema, desde Murnau e Dreyer, sempre se deu bem com isso..Vogamos no interior de uma lógica narrativa em que os atores se definem, antes de tudo o mais, como locutores de palavras. O que, noblesse oblige, nos remete para as experiências nesse domínio dos melhores filmes de Manoel de Oliveira - pensemos no caso modelar de Benilde ou a Virgem Mãe (1975) e lembremos esse pormenor, nada secundário, que é o facto de Botelho ter realizado um filme, nem documentário, nem ficção, misto de homenagem e alegoria, que dá pelo nome suavemente narcisista de O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (2016)..Num certo sentido, que é um sentido sempre incerto, os atores existem mais através das palavras que pronunciam do que da história (individual ou coletiva) a que pertencem. Escutamo-los como vozes de um "além" que, embora habitado pela certeza da morte, foi resgatado pelo labor da arte literária e da sua eterna cúmplice, a linguagem cinematográfica. Daí a pedagógica estranheza da personagem de Marcenda, a jovem que descobrirá o que é um beijo através de Ricardo Reis. Em boa verdade, ela tem aquilo que, entre a existência imaginária de um e a morte suspensa de outro, falta a ambos os poetas: um corpo..E é das ideias mais fulgurantes de Saramago, devidamente respeitada pela mise en scène de Botelho, que Marcenda padeça de um mal que faz que uma das suas mãos seja, literalmente, um corpo morto. A sua vida transporta algo que a desmente, integrando a morte como personagem paciente, sempre à procura de um corpo. Daí que Victoria Guerra a interprete da forma mais justa, quer dizer, como uma musa falhada, expondo a quietude da sua mão como qualquer coisa que, de tão absurdamente físico, já está do lado da morte..Comédia desencantada, sem dúvida. Ou desassossegada, se tal classificação nos pode ajudar. A sua matéria central é o tempo, não como arquitetura de passado e presente, talvez futuro, antes como paisagem de um movimento para o qual não há exterior possível: "O tempo arrasta-se como uma vaga lenta e viscosa, uma massa de vidro líquido em cuja superfície há miríades de cintilações que ocupam os olhos e distraem o sentido, enquanto na profundidade transluz o núcleo rubro e inquietante, motor do movimento. Sucedem-se estes dias e estas noites, sob o grande calor que alternadamente desce do céu e sobe da terra" (pág. 454)..Apesar desse assombramento do tempo, ou melhor, precisamente por causa do seu peso trágico, evitemos cair na ilusão de que estamos perante uma parábola sem geografia nem calendário, com Reis e Pessoa a deambular pelas avenidas abstratas de uma história sem coordenadas. É certo que "Lisboa é um grande silêncio que rumoreja, nada mais" (pág. 256), mas não é menos certo que nesse silêncio ecoam as atribulações do próprio tempo, isto é, tudo o que define a perturbante singularidade do "ano da morte de Ricardo Reis" - 1936..Por invencível vício cinéfilo, apetece recordar que foi também o ano em que Charlie Chaplin, em personagem de intratável solidão proletária, expôs o irracionalismo da industrialização, encenando-se como peça anónima de uma gigantesca fábrica: o filme chama-se Tempos Modernos, título que poderia servir como adenda sarcástica a O Ano da Morte de Ricardo Reis..Mas se Chaplin representa o esvaziamento do homem moderno - numa premonição visionária dessa abundância de coisa nenhuma que as (chamadas) redes sociais nos impuseram -, Botelho, na senda de Saramago, relançando a herança de Pessoa, expõe a tragédia, às vezes comédia, de vivermos numa permanente indefinição identitária: "O seu caso, Reis amigo, não tem remédio, você, simplesmente, finge-se, é fingimento de si mesmo, e isso já nada tem que ver com o homem e com o poeta" (pág. 133)..Daí também o paradoxo irremediavelmente português com que o filme vai citando as convulsões de 1936 - a consolidação do salazarismo, o crescente poder de Hitler e Mussolini -, deleitando-se, e deleitando-nos, na contemplação dos sinais com que fechamos a nossa história numa utopia de tal modo ingénua que chega a julgar-se liberta da crueldade do tempo que passa. Como se a estátua do gigante Adamastor, o menu do Martinho da Arcada ou o nevoeiro do Cais das Colunas nos bastassem para aconchegar a solidão que transportamos. Como se, tal como Marcenda, algures no corpo ou na alma, resistíssemos à insensatez da vida contemplando uma parte da morte que está para nos acontecer..Que fazer com este filme? A conjuntura de pandemia obriga-nos a referir que, por mais que estimemos as alternativas de conhecimento do cinema que a internet nos proporciona, O Ano da Morte de Ricardo Reis é um objeto que só existe na escuridão obrigatória de uma sala de cinema. A largura imensa das imagens (eterna nostalgia do CinemaScope), o envolvimento sonoro, a presença quase física, mas tão etérea, dos atores, tudo exige que refaçamos o velho ritual: sentarmo-nos ao lado de outros espectadores, respeitando a sua solidão, questionando o que fazemos ou podemos fazer com a nossa, enfim, aceitando a aventura que o filme nos propõe..Que o cinema exista tão enredado com o sonho, eis o que vale também como celebração da arte de sermos espectadores, hoje em dia banalizada pela proliferação de imposturas como a reality TV ou pela facilidade pueril com que vemos fragmentos de filmes no YouTube, ignorando de onde vêm, que desejos os movem, que pensamentos os fizeram existir. Não desesperemos. Voltando ao princípio, às lições de Pedro, o Louco, citemos mais algumas palavras de Belmondo, logo depois de nos falar da omnipresença do sonho: "Faz bom tempo, meu amor, nos sonhos, nas palavras e na morte."