O holocausto escondido

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O abuso de menores é uma bomba-relógio que ameaça fazer implodir toda a Igreja Católica. Esta semana, a divulgação do relatório de uma comissão de investigação sobre a pedofilia na Igreja francesa ao longo dos últimos cinquenta anos chocou o mundo pela inimaginável dimensão dos números. Trezentos mil casos confirmados de crianças abusadas, sabendo-se que, na realidade, serão muitas mais.

O facto de a investigação ter sido conduzida por uma entidade independente faz toda a diferença. Foi assim em França, nos Estados Unidos, no México, na Irlanda e na Áustria, entre outros, e os resultados foram esmagadores. Entre nós, e por oposição, veja-se o parco resultado dos esforços da Conferência Episcopal Portuguesa, que em 2019 disse ter analisado uma dezena de casos, concluindo que em metade dos mesmos não existiam fundamentos para as queixas de abusos. Quando questionada sobre os números reais e atualizados, a mesma CEP simplesmente não responde. Esta atitude de encobrimento sistemático foi também denunciada por um ex-diretor da Polícia Judiciária que investigou casos concretos.

Não é preciso ser doutorado em Estatística para concluir que este é um fenómeno transversal na Igreja Católica e que pode atingir em todo o mundo números de dimensões bíblicas. A questão parece ser sistémica, mas do lado da Igreja, em Roma e por todo o lado, continua-se a tapar o sol com a peneira. Sempre que a pressão pública aumenta, vai gerindo o status quo com mais umas quantas propostas avulsas de mudança, recusando ir à raiz do problema: o processo formativo dos seus membros, o voto de castidade e o celibato.

Ontem fomos surpreendidos com a notícia de que a Igreja portuguesa só admite que se faça um levantamento dos casos de pedofilia se o mesmo não se circunscrever apenas aos membros do clero. Como? Tive de reler a notícia para perceber que, sim, a velha tática do levantamento de poeira estava a ser despudoradamente usada. O bispo auxiliar de Lisboa foi ao ponto de afirmar que a Igreja é a única instituição que está a levar o tema a sério e que não via o Ministério da Educação ou as ordens profissionais a fazer qualquer coisa! A menos que disponha de dados, de todos desconhecidos, que revelem indícios de um fenómeno de concentração de abuso de crianças entre professores, os veterinários ou os engenheiros, o senhor bispo deveria preocupar-se em assumir com responsabilidade uma realidade que já ninguém desconhece e que é obviamente sistémica. A escola e as ordens profissionais não têm alçapões protegidos pelo sigilo da confissão, pela justiça eclesiástica ou pelas espessas paredes dos seminários e das igrejas; pelo contrário, são, felizmente, espaços transparentes e escrutinados pela sociedade.

Há 11 anos, o cardeal Saraiva Martins disse que a Igreja era pela "tolerância zero", mas que não lavava a "roupa suja" em público. Lamentavelmente, fico com a ideia de que nada mudou. Quando a roupa suja é a violação das nossas crianças, nem a Igreja nem ninguém está acima da lei.

A Igreja Católica está a comportar-se como aquele náufrago que se esforça a tirar água de um bote não querendo perceber que este se afunda porque mete água por demasiadas brechas. Enquanto isso, até que ponto vai a sociedade permitir que este holocausto silencioso permaneça escondido e impune?

Deputado e professor catedrático

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