O gosto de verão do IndieLisboa a anunciar a rentrée

Começa amanhã mais um IndieLisboa, neste ano com natural ênfase no cinema português. Até 6 de setembro, o São Jorge, a Culturgest, o Ideal e a Cinemateca enchem-se de cinema sem regras.
Publicado a
Atualizado a

O vírus não apanha o IndieLisboa. Nesta edição da idade maior, a 18.ª, o festival do corvo volta a apostar no presencial, tal como já tinha acontecido no ano anterior - um remake das mesmas condições de distância na sala, mas agora com um público já mais habituado a ver cinema de máscara. Não se pode dizer que seja um ano de mudança, talvez seja mais de continuidade, sobretudo em apostas seguras, como a Boca do Inferno, secção dedicada a filmes "perigosos", à competição nacional - cada vez mais forte - e à muito procurada Director"s Cut, em que o foco são filmes sobre o prazer cinéfilo.

Olhando para as promessas da seleção podemos pensar também num festival que não desampara uma linha tão exploratória como arriscada, sobretudo quando propõe retrospectiva de Camilo Restreto, que no ano passado fez furor em festivais de arte & ensaio com o algo empolado Los Conductos. É um sinal de aviso para o que se vai: cinema algo selvagem com pistas de futuro, mesmo para atrair o target do festival, um público jovem que não vai tanto àquilo que oferece o circuito das salas.

Da competição internacional, a ala dura do Indie conseguiu What do we See when we Look at The Sky, de Alexandre Koberidze, um dos finalistas na lista dos melhores do ano do prémio Fipresci da crítica internacional. O novo cinema da Geórgia destinado a ser um caso sério de popularidade. Mas o mais mediático desta competição é mesmo o novo de Julien Faraut, o realizador do muito aclamado John McEnroe - No Império da Perfeição. Agora, em Les Sorciéres de l"Orient explora o vólei, neste caso as memórias da equipa de vólei feminina do Japão nas Olimpíadas de 1964.

De resto, presença forte nesta competição de documentários numa seleção que foi à pesca nas secções secundárias da Berlinale, San Sebastián ou o ACID de Cannes. Mas mesmo sendo depois da última edição, este Indie não traz nada de Cannes, festival que terá por certo reflexo num festival da concorrência, o LEFFEST.

Nas sessões extra-competitivas pode estar o ganho, como é o caso do filme de abertura, Summer of Love (or When the Revolution Could not Be Televised), de Questlove, obra que já está disponível no streaming em Portugal. Destaque também para dois documentários com marca nacional: A Cidade de Portas, de Teresa Prata e Humberto Kzura, sobre a arte do urbanista Nuno Portas, e Paraíso, de Sérgio Tréfaut, um regresso ao seu Brasil para filmar um ponto de encontro de um grupo de idosos.

Todavia, o bilhete mais quente do festival deve ser Bad Luck Banging or Loony Porn, o divertidíssimo filme de Radu Jude que venceu o último Festival de Berlim. Uma sátira aos pudores e trafulhices desta Roménia. Passa na secção Silvestre, onde são programados filmes de autores consagrados e cuja linguagem desperte novos olhares. Será um filme que poderá suscitar alguma divisão, mas é também uma obra urgente, já com estreia comercial garantida.

É também na mesma secção que será exibido o novo Eugène Green, Atarrabi & Mikelats. Regresso ao festival de um cliente habitual.

Nas longas portuguesas, importa destacar a natural favorita, Susana Nobre e a sua nova viagem até Vila Franca Xira, neste caso para seguir um taxista regressado dos EUA em No Táxi do Jack. Cinema do real com reverência a Kaurismaki.

Este ano, talvez mais do que nunca, de aplaudir a safra das curtas nacionais a concurso. Conjetural ou não, pode-se dizer que é um ano em que se revelam nomes mas também se confirmam outros. Duas curtas destacam-se plenamente das demais. A primeira delas é Catatonia, de Tiago Rosa-Rosso, nome já visível do circuito das curtas. Uma história sobre um jovem com problemas catatónicos ajudado por dois amigos no espaço de dois dias na cidade de Lisboa. Para além de ser um delicado estudo observacional de uma geração, este pequeno conto de absurdos tem um charme altivamente lisboeta. Tiago Rosa-Rosso expõe um mal-estar social sem ser panfletário e nunca nos faz desviar o olhar do ecrã. A outra enorme surpresa é Silvestre, de Rúben Gonçalves, protagonizado por um promissor Paulo Dinis, aqui um jovem em limbo precário: esconde um segredo, tem um mau emprego e vive numa casa emprestada. Muito mais do que um relato de uma precariedade de uma juventude lisboeta, é sobretudo um objeto que apela a uma justeza dramática milimétrica. Rúben filma tudo com uma contenção extraordinária e é perito em fazer avançar a narrativa sem perder um bater real do coração do protagonista. Um filme perto do coração mas com uma sensualidade que se sobrepõe à tentação "queer". E além de Dinis, há atores estupendos como João Pedro Mamede, Cleo Tavares, António Calpi (conhecido pela sua outra vida como homem forte da Gulbenkian no cinema) e Luís Lobo Pimenta. Atores sem medo de exporem uma dolorosa intimidade.

Das curtas a concurso, impossível também ficar sisudo perante o humor de Os Últimos Dias de Emmanuel Raposo, de Diogo Lima, 47 minutos de "mockumentary" a brincar com as memórias televisivas açoreanas dos anos 90 ou pela rasgada dor de We Won"t Forget, de Edgar Morais e Lucas Eberl, cinema com ponta de transgressão. Bem bonita é a pequena curta de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, Um Quarto na Cidade, testemunho real de como a vida e as suas memórias podem passar pela mais terna ilusão cinéfila, ou não fosse Jacques Demy citado.

Mais uma vez o Indie acontece no verão, a partir de agora Lisboa começa a ganhar fôlego para a rentrée. Até dia 6 de setembro...

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt