Há dez anos, o general iraniano Qassem Soleimani (1957-2020) discursou para os seus homens: "O campo de batalha é o paraíso perdido da humanidade." E, ciente do lirismo da frase, assim poeta continuou: "O paraíso onde a virtude e os atos dos homens estão no plano mais alto." No plano artístico, declamatório seja só este, as batalhas gostam de pairar alto: "Do alto destas pirâmides, quarenta séculos vos contemplam", já dissera outro general, Napoleão Bonaparte, em Gizé..As batalhas antes de matar (os outros, outros), a jusante, têm de empolgar (os outros, nossos), a montante. Como a valentia dos soldados nem sempre é natural, ela deve ser espicaçada pelas palavras dos generais. Estes muitas vezes foram mais hábeis nos discursos prévios do que valorosos nos combates que se seguiram, o que não foi o caso do general Soleimani. Quarenta anos antes do discurso citado, no começo da Revolução Iraniana, o jovem trolha que ingressou na Guarda Revolucionária Islâmica, batalhão pretoriano e religioso do ayatollah Khomeini, começou a fazer carreira na guerra. E a carreira que fez, apesar das citações iniciais desta crónica, não se valeu sobretudo de palavras..Ele aprendeu da guerra os combates e a intendência, onde se notabilizou contra o primeiro inimigo, o Iraque do sunita Saddam Hussein, e, recentemente, nos dez últimos anos, expandindo a influência do Irão xiita pela Síria, pelo Líbano e pela Palestina... Bom de guerra, Qassem Soleimani pôs sempre os seus combates ao serviço da visão política que tinha para o seu país. A influência deste, nas duas últimas décadas e sobretudo graças a ele, não cessou de crescer na região mais explosiva do mundo, o Médio Oriente. A região que mais dramaticamente pode vir a influenciar o mundo, ganhando-o, o que será péssimo, ou implodindo, o que não deixará também de ser trágico..Mas o sapateiro que escreve esta crónica não quer subir ao tornozelo da geopolítica, basta-lhe a altura do cérebro de Qassem Soleimani, onde as linhas e os fusíveis produziram aquelas duas frases: "O campo de batalha é o paraíso perdido da humanidade" e "o paraíso onde a virtude e os atos dos homens estão no plano mais alto." Quem assim falou não foi tanto para os seus homens, soldados, religiosos, fiéis e prosélitos, foi para si. Foram palavras de mártir. Se querem que vos diga, na categoria dos combatentes que atravessaram a história da humanidade, os mártires foram e são os mais perigosos para essa humanidade..Perder perdem sempre, mais cedo ou mais tarde, os generais das batalhas, tal como os civis que tremem com fogo de artifício. Napoleão venceu a citada batalha das Pirâmides e não venceria depois em Waterloo - mas bateu as botas, quinou, enfim, desapareceu definitivamente num lugar, a ilha de Santa Helena, onde a única batalha, em milénios, tem sido entre gaivotas, com muitos berros e poucas penas arrancadas. Com a promessa de um punhado de virgens ou de anjos com trombetas, à espera, ninguém é cobarde, nem mesmo só prudente. Por isso os mártires arriscam-se à vontade, mesmo entre bombas..Qassem Soleimani parecia ousar demasiado quando incentivou o ataque à embaixada americana em Bagdade. Mas poderia contrapor-se que no tempo do presidente Carter, era Soleimani jovem guarda revolucionário, até se podia invadir a embaixada americana em Teerão, e sequestrar e agredir funcionários americanos... Acontece porém que, hoje, o presidente americano é Donald Trump..E este, embora avesso a guerras, não é avesso a si próprio! Nunca avesso a si próprio. Se não gosta de guerras a fazer por ele - livrou-se do Vietname, guerra que apoiava mas não à sua custa - e se prefere o negócio de hotéis ao de quartéis, porque está naquele e não neste (o que só lhe fica bem), Trump, como bom negociante, percebeu que ao custo de um drone escondia um desgraçado processo de impeachment e ganhava fãs para as próximas eleições. Qassem Soleimani não apostou, sabia o que fazia. E, porque mártir, não se importava..Tem disto o desejo de martírio, até ao inteligente torna-o estúpido. Se há uma segunda vida, até isso já Qassem Soleimani descobriu: afinal, apostou mal. Ninguém o esperava no paraíso, nem em magote nem virgem.