O Gamalink (do navegador, claro) para comunicar no espaço

Criada há 16 anos, a empresa Tekever desenvolveu um sistema de comunicações inovador e também já construiu os seus próprios satélites
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Não se adivinha, mas a pequena placa cheia de circuitos eletrónicos que Pedro Sinogas tem na mão saiu há pouco de uma quarentena de três meses. Foi o tempo de desaparecer - nestas coisas, diz-se decair - a radioatividade que se lhe tinha "entranhado", depois das radiações intensas a que foi sujeita, para se perceber como isso pode afetar o seu desempenho no espaço.

Quando estiver na órbita terrestre, a mais de 60 mil quilómetros de distância do planeta no ponto mais longínquo da sua viagem, ou seja, no espaço profundo, o equipamento será bombardeado por radiações cósmicas. Mas mesmo assim não poderá falhar, porque disso dependerão as comunicações da missão europeia Proba 3.

Vê-se pelo sorriso largo que Pedro Sinogas, engenheiro informático, fundador e administrador da empresa portuguesa Tekever, que produziu o equipamento, está satisfeito com o resultado dos testes. E não poupa o elogio: "A nossa equipa de engenharia fez um ótimo trabalho."

Aquela placa é um Gamalink, um sistema de comunicações para o espaço que foi criado pela Tekever, e que vai assegurar as comunicações entre os dois satélites da missão europeia Proba 3, com lançamento marcado para 2020.

"Para estas missões, o equipamento tem de ser irradiado de forma a simular as diferentes intensidades da radiação cósmica, para se perceber se falha, ou onde falha", explica Pedro Sinogas. Neste caso não houve percalços de maior, o Gamalink ficou aprovado.

"O resultado final deu uma probabilidade de 0,05% de falha durante a vida da missão", ou seja, durante pelo menos dois anos, adianta. "E nos testes, quando atingiu esse nível, a placa apenas fez um reboot [reiniciou], o que não é um problema grave, porque depois voltou a funcionar."

Como um satélite de 300 metros

A missão Proba 3 da ESA, a agência espacial europeia, vai estudar a coroa solar, o que implica haver dois satélites: o que tem a bordo o coronógrafo, para registar os dados, e o ocultador que, como o nome diz, vai ocultar o Sol. Um (o ocultador) coloca-se na frente do outro, que por sua vez fará as observações. É como um eclipse solar total visto da Terra, quando a Lua se interpõe entre a Terra e o Sol, mas simulado no espaço pelos dois satélites.

Para que a engenhosa ideia funcione, a sincronia entre as duas naves, na sua viagem orbital em torno da Terra, tem de ser de uma precisão irrepreensível, e é isso que vai ser assegurado pelo sistema de comunicações Gamalink.

Assim batizado em homenagem a Vasco da Gama - "como anda à volta do mundo, chega a todo o lado e liga satélites entre si, com a Terra, ou com aviões, achámos que era uma referência interessante", conta Pedro Sinogas -, o Gamalink estreou-se no espaço em 2015, a bordo de uma missão chinesa: a TW-1, composta por três pequenos satélites que tinham de comunicar entre si. A solução para garantir essa "conversa" a três no espaço foi o Gamalink. Cada um dos pequenos satélites levava um desses sistemas a bordo, e tudo acabou por funcionar sem mácula.

Este tipo de comunicação, em que é um software que programa e gere as comunicações de rádio, mudando as frequências se for necessário, e também a ordem dos "interlocutores "consoante as circunstâncias, foi inicialmente desenvolvido pela Tekever para aplicações terrestres. O salto para o espaço acabou por surgir com naturalidade, por sugestão de um dos membros da equipa.

"Com o Gamalink, temos mais processadores, em vez de ter mais eletrónica, e fazemos o software que permite gerir a forma como o equipamento funciona", diz Pedro Sinogas. "É tudo automático, o dispositivo pode, assim, ser mais pequeno e, sobretudo, torna-se muito adaptável, porque podemos fazer comunicação entre satélites, comunicações para a Terra, obter o sinal de GPS e ao mesmo tempo medir distâncias entre vários objetos, tudo com o mesmo equipamento físico, com diferentes programas de software a correr", explica o responsável da empresa.

A partir do momento em que a equipa começou a falar nas potencialidades do seu sistema em conferências internacionais de espaço e em artigos científicos - a Tekever registou a propriedade intelectual do Gamalink -, os interessados não se fizeram esperar.

Foi durante uma dessas conferências que o instituto de investigação chinês que lançou a missão TW-1 propôs à empresa portuguesa que participasse no projeto. Foi assim, também, com a Proba 3. "Fomos abordados pela ESA, que nos disse: temos aqui o problema perfeito para a vossa solução", conta, divertido, Pedro Sinogas.

O problema era este: embora composta por dois satélites, a missão Proba 3 funciona como se houvesse um único satélite com 300 metros de comprimento - um corpo impossível de lançar para o espaço, mas que pode ser simulado se a comunicação entre eles for a que o Gamalink consegue garantir, para que a sincronia mútua seja sempre perfeita.

"A ESA não tinha muitas alternativas à nossa tecnologia para a missão, o que nos coloca numa posição bastante boa, de colaboração com a agência espacial europeia", nota Pedro Sinogas.

O trabalho da empresa para a Proba 3 está agora a entrar na última fase, depois das provas de radiação. O sistema "já passou os testes todos, e estamos agora a produzir os equipamentos finais, que serão depois entregues à ESA".

Esta é já a versão Gamalink Deep, para o espaço profundo, que está preparada para resistir à radiação cósmica. Depois dos primeiros Gamalinks, destinados a satélites de órbita baixa, como no caso da missão chinesa TW-1, este é um passo mais, a que outros, certamente, vão seguir-se. Afinal, na Tekever, a dinâmica é sempre essa.

De três fundadores a 260 pessoas em seis países

Foi o tema do doutoramento, que acabou por não concluir, que levou Pedro Sinogas a desafiar dois colegas do Técnico a fundarem juntos uma empresa. "Fiz investigação em modelação de processos de negócio na área informática e alguns professores diziam que aquilo nunca ia dar em nada", lembra Pedro Sinogas. "Como bom português", resolveu tirar teimas. Os colegas aceitaram o desafio e, a 4 de janeiro de 2001, nascia a Tekever. Dedicaram-se às telecomunicações, fizeram aplicações móveis nessa área, diversificaram clientes, ganharam contratos com a ESA, criaram os seus próprios sistemas, registaram patentes e, 16 anos volvidos, a Tekever passou das três pessoas iniciais às atuais 260 e está implantada em seis países. Em Portugal, em Lisboa, Porto, Óbidos e Ponte de Sor, e também no Reino Unido, Estados Unidos, Brasil, China e Holanda. A estratégia de internacionalização assentou na ideia de "ir oito horas para a frente, e oito para trás", o que permite, quando necessário, ter equipas de engenharia a trabalhar 24 horas por dia. A boa decisão, à vista dos resultados.

Três anos para criar o cube sat Tekever

Com o trabalho feito para desenvolver o Gamalink, uma coisa levou à outra e, há pouco mais de três anos, uma das equipas da Tekever lembrou-se de que a empresa também podia fazer os seus próprios satélites. Afinal, já não estavam assim tão longe de conseguir construir autonomamente os vários subsistemas de um pequeno satélite. "Fizeram uma proposta, e foi aprovada internamente", conta Pedro Sinogas, satisfeito com o investimento feito. "Isso trouxe-nos muito know-how sobre os diferentes subsistemas", explica. O facto é que já havia muito conhecimento ganho noutros projetos, nomeadamente nos das pequenas aeronaves não tripuladas que a empresa criou e que produz nas suas instalações de Óbidos. "Muitos dos subsistemas são semelhantes aos que já usamos nos aviões e drones", lembra Pedro Sinogas. É o caso, por exemplo, das baterias. "Fazemo-las agora para o espaço, mas já existia o conhecimento de como carregar e descarregar as baterias". E com as câmaras e antenas é a mesma coisa. Depois, claro, o Gamalink assegura as comunicações.

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