Um futuro próximo algo tóxico. Um investigador privado e a sua voz melosa. Fechamos os olhos e pensamos em Blade Runner, mas Lisa Joy não se chama Ridley Scott e esta trapalhada que cruza ficção-científica e o "film noir" é apenas uma peça de indústria, peça rara: o chamado "produto" de linha média, não demasiado caro, não demasiado barato, um cruzeiro médio para tentar manter a máquina da Warner à tona por entre "blockbusters" e a pensar também nos interesses da HBO Max (nos EUA chega ao streaming em simultâneo)..Tem estampa de "turkey", expressão dada aos filmes ambiciosos que estão destinados a fracassos comerciais e desprezo da crítica, este Reminiscence, um conto futurista que nos mostra como num futuro próximo os EUA recuperam de uma guerra fronteiriça e onde as mudanças de tempo fazem com que muitas cidades sejam inundadas pelos mares. De um lado, os ricos vivem nas "zonas secas", protegidos por barragens gigantes, de um outro, os desfavorecidos, a tentar sobreviver. Hugh Jackman é Nick Bannister, um ex-veterano de guerra e investigador privado, perito em manipular uma máquina de alta tecnologia que consegue recuperar memórias de forma realista. Fá-lo como método de sobrevivência e vive essencialmente de biscates que o Ministério Público lhe solicita. Mas a sua vida muda quando conhece uma cantora de cabaret chamada Mae, uma "femme fatale" com a qual se envolve romanticamente. Depois de perceber que Mae pode não ser quem diz, Bannister envolve-se num esquema de identidades falsas, corrupção policial e um sequestro de um herdeiro. Será a sua máquina de recuperar memórias que poderá ser a chave para resolver um mistério que é também romântico - Nick vai percebendo que o mais real em tudo isto é o seu amor pela mulher desaparecida..Reminiscência é um filme que se propõe trabalhar a heterogeneidade do conceito do "filme negro", das duplas identidades aos ambientes e às atmosferas, mas fá-lo com um encargo que não é artístico, mas sempre ditado pelas regras industriais. Se é um filme que fala da obstinação do amor e de se estar apaixonado, não deixa de ser inquietante ser feito com tanta falta de alma. E Lisa Joy, a argumentista e realizadora, por certo não era isto que queria criar, pelo menos se pensarmos que já fez muito melhor na série Westworld, onde aí cruzava a "sci-fi" com uma ideia de "western". Aqui, além de diálogos menos pirosos, era também preciso todo um outro universo de "mise-en-scène" - há meios, aparato, cenários de escala espetacular, mas não há uma ideia de cinema. Noutros tempos, um John Woo era cineasta para controlar aqui alguns danos. E se é verdade que algumas das imagens dos mergulhos na máquina molhada das memórias aludem a Estranhos Prazeres, de Kathryn Bigelow, os resultados são bem diferentes.....Felizmente, a mulher fatal de serviço é uma estimulante Rebecca Fergunson, a atriz sueca empresta à sua cantora misteriosa uma galvanização superior. Ela canta, encanta e seduz com um "glamour" que é aquilo que de melhor tem o filme. Rebecca não está em todas as cenas do filme, mas quando aparece como que o faz parar. Trata-se do bálsamo que esta produção nem merecia. É neste momento um dos talentos de Hollywood que ainda se pode comparar às mais clássicas estrelas de.cinema. Quem a viu recentemente em Doutor Sono, de Mike Flanagan, percebe também que pode ser uma vilã fria e tenebrosa...Depois, claro, sobra um Hugh Jackman que tenta ser suave e duro ao mesmo tempo, mas que não tem nada onde se agarrar. Claro que há química entre os dois, mas não chega. E não chega também a personagem secundária de Thandiwe Newton (antes assinava Thandie mas agora, para ser politicamente correta com as origens, mudou o nome...), com excesso de protagonismo e um peso na história que é supérfluo..Entre peripécias e sub-intrigas, o argumento de Joy cai sempre no erro de ser desmesuradamente intricado e rebuscado. Da pegada de pesadelo ecológico à alusão de teor político da América das desigualdades, Reminiscência acaba por não pegar nada e dá ao mito de Orfeu e Eurídice uma exposição tão parola como piegas, sobretudo sublinhada quando a direção de fotografia abusa dos filtros do "pôr-do-sol" como estado mental das personagens... A dada altura, Mae olha para Nick e diz que adora aquela altura do dia antes da cidade acordar para a noite - no futuro, Miami vive de noite e descansa de dia... A única coisa que não é gratuita é uma noção de se repensar os lugares comuns do "final feliz" num grande filme de Hollywood. Aí há uma bela ideia de guião que importa não desvendar para não estragar a surpresa final, mas pode-se dizer que não é uma estafada reviravolta ou surpresa narrativa, mas sim uma possibilidade de se repensar a ordem e a mecânica dos desígnios da resolução. Às vezes, o "princípio, meio e fim" é sobrevalorizado..dnot@dn.pt
Um futuro próximo algo tóxico. Um investigador privado e a sua voz melosa. Fechamos os olhos e pensamos em Blade Runner, mas Lisa Joy não se chama Ridley Scott e esta trapalhada que cruza ficção-científica e o "film noir" é apenas uma peça de indústria, peça rara: o chamado "produto" de linha média, não demasiado caro, não demasiado barato, um cruzeiro médio para tentar manter a máquina da Warner à tona por entre "blockbusters" e a pensar também nos interesses da HBO Max (nos EUA chega ao streaming em simultâneo)..Tem estampa de "turkey", expressão dada aos filmes ambiciosos que estão destinados a fracassos comerciais e desprezo da crítica, este Reminiscence, um conto futurista que nos mostra como num futuro próximo os EUA recuperam de uma guerra fronteiriça e onde as mudanças de tempo fazem com que muitas cidades sejam inundadas pelos mares. De um lado, os ricos vivem nas "zonas secas", protegidos por barragens gigantes, de um outro, os desfavorecidos, a tentar sobreviver. Hugh Jackman é Nick Bannister, um ex-veterano de guerra e investigador privado, perito em manipular uma máquina de alta tecnologia que consegue recuperar memórias de forma realista. Fá-lo como método de sobrevivência e vive essencialmente de biscates que o Ministério Público lhe solicita. Mas a sua vida muda quando conhece uma cantora de cabaret chamada Mae, uma "femme fatale" com a qual se envolve romanticamente. Depois de perceber que Mae pode não ser quem diz, Bannister envolve-se num esquema de identidades falsas, corrupção policial e um sequestro de um herdeiro. Será a sua máquina de recuperar memórias que poderá ser a chave para resolver um mistério que é também romântico - Nick vai percebendo que o mais real em tudo isto é o seu amor pela mulher desaparecida..Reminiscência é um filme que se propõe trabalhar a heterogeneidade do conceito do "filme negro", das duplas identidades aos ambientes e às atmosferas, mas fá-lo com um encargo que não é artístico, mas sempre ditado pelas regras industriais. Se é um filme que fala da obstinação do amor e de se estar apaixonado, não deixa de ser inquietante ser feito com tanta falta de alma. E Lisa Joy, a argumentista e realizadora, por certo não era isto que queria criar, pelo menos se pensarmos que já fez muito melhor na série Westworld, onde aí cruzava a "sci-fi" com uma ideia de "western". Aqui, além de diálogos menos pirosos, era também preciso todo um outro universo de "mise-en-scène" - há meios, aparato, cenários de escala espetacular, mas não há uma ideia de cinema. Noutros tempos, um John Woo era cineasta para controlar aqui alguns danos. E se é verdade que algumas das imagens dos mergulhos na máquina molhada das memórias aludem a Estranhos Prazeres, de Kathryn Bigelow, os resultados são bem diferentes.....Felizmente, a mulher fatal de serviço é uma estimulante Rebecca Fergunson, a atriz sueca empresta à sua cantora misteriosa uma galvanização superior. Ela canta, encanta e seduz com um "glamour" que é aquilo que de melhor tem o filme. Rebecca não está em todas as cenas do filme, mas quando aparece como que o faz parar. Trata-se do bálsamo que esta produção nem merecia. É neste momento um dos talentos de Hollywood que ainda se pode comparar às mais clássicas estrelas de.cinema. Quem a viu recentemente em Doutor Sono, de Mike Flanagan, percebe também que pode ser uma vilã fria e tenebrosa...Depois, claro, sobra um Hugh Jackman que tenta ser suave e duro ao mesmo tempo, mas que não tem nada onde se agarrar. Claro que há química entre os dois, mas não chega. E não chega também a personagem secundária de Thandiwe Newton (antes assinava Thandie mas agora, para ser politicamente correta com as origens, mudou o nome...), com excesso de protagonismo e um peso na história que é supérfluo..Entre peripécias e sub-intrigas, o argumento de Joy cai sempre no erro de ser desmesuradamente intricado e rebuscado. Da pegada de pesadelo ecológico à alusão de teor político da América das desigualdades, Reminiscência acaba por não pegar nada e dá ao mito de Orfeu e Eurídice uma exposição tão parola como piegas, sobretudo sublinhada quando a direção de fotografia abusa dos filtros do "pôr-do-sol" como estado mental das personagens... A dada altura, Mae olha para Nick e diz que adora aquela altura do dia antes da cidade acordar para a noite - no futuro, Miami vive de noite e descansa de dia... A única coisa que não é gratuita é uma noção de se repensar os lugares comuns do "final feliz" num grande filme de Hollywood. Aí há uma bela ideia de guião que importa não desvendar para não estragar a surpresa final, mas pode-se dizer que não é uma estafada reviravolta ou surpresa narrativa, mas sim uma possibilidade de se repensar a ordem e a mecânica dos desígnios da resolução. Às vezes, o "princípio, meio e fim" é sobrevalorizado..dnot@dn.pt