O futebol na trégua de Natal
Chamaram-lhe a trégua de Natal. No dia 24 de dezembro de 1914, com os soldados de ambos os lados a enfrentarem o primeiro Natal fora de casa desde o começo de uma guerra que, afinal, não ia ter conclusão rápida, ao contrário das expectativas com que muitos tinham partido para os campos de batalha, aconteceu um dos momentos mais simbólicos e romantizados da história da I Guerra Mundial. O dia em que as armas foram postas de lado e trocadas por uma confraternização, músicas de Natal e uma (ou várias) bola(s). Se em algum momento a guerra esteve perto de ser derrotada pelo bem, naqueles quatro anos, foi ali, com o futebol como protagonista.
O futebol, já se sabe, é muito mais importante do que uma questão de vida ou de morte. Avisou-nos disso Bill Shankly, mítico treinador do Liverpool nas décadas de 1960 e 1970, mas já antes ecoavam relatos históricos de que assim era. O futebol é capaz de fazer parar uma guerra.
No Congo dos anos 1960, por exemplo, as diferentes fações de um sangrento conflito civil acordaram uma pausa para receber a visita do Santos do rei Pelé. Em 1982, aquando da invasão do Líbano por Israel, os bombardeamentos pararam durante uma hora e meia para ver jogar a seleção do Brasil no Mundial desse ano. Em 2005, depois de ter liderado a Costa do Marfim para o primeiro apuramento para um campeonato do mundo, o avançado Didier Drogba fez um discurso apaixonado à nação a pedir o fim de uma guerra civil sanguinária que se arrastava há três anos, conseguindo o primeiro cessar-fogo desde o início dos confrontos.
O futebol também pode provocar guerras, sim, e não nos referimos só às de claques ou arruaceiros casuais. Há um Dímamo de Zagreb-Estrela Vermelha a atestá-lo, na eclosão do conflito nos Balcãs que desfez a ex-Jugoslávia nos anos 1990; ou as cem horas de guerra entre as Honduras e El Salvador, em julho de 1969, após uma eliminatória entre as respetivas seleções de futebol. É o outro lado da moeda dessa conclusão sábia de Bill Shankly.
Mas nenhum outro episódio a envolver o futebol num conflito bélico ganhou o simbolismo histórico dessa trégua de Natal de 1914. Repare-se bem: duas semanas antes, um pedido oficial de tréguas natalícias endereçado por carta pelo Papa Bento XV aos diversos governos envolvidos caíra em saco roto, ignorado tanto por alemães como por ingleses ou franceses. E, no entanto, por algumas horas, nalgumas frentes ocidentais de batalha, entre o norte de França e a Bélgica, a trégua foi possível. E espontânea.
A história tratou de efabular um jogo de futebol entre as tropas inglesas e alemãs nesse dia de Natal, algures entre as localidades belgas de Saint-Yvon e Ypres, que as tropas germânicas terão ganho por 3-2 (já então, no futebol, ao contrário da guerra, no fim ganhariam os alemães, como bem mais tarde ficou celebrizado numa frase do internacional inglês Gary Lineker), mas as evidências históricas de que isso tenha acontecido dessa forma - ter havido um jogo organizado, com resultado final - são pouco mais do que inexistentes. Trégua, houve. Bola, há relatos que o indicam. Quanto a um jogo de Natal ganho pelos alemães por 3-2, entramos no domínio da lenda coletiva.
Primeiro, então, os factos. Segundo o historiador americano Stanley Weintraub, aproximadamente cem mil soldados, de ambos os lados, terão aderido às tréguas natalícias de 1914, que começaram com as tropas alemãs a decorar as suas trincheiras, na frente belga de Ypres, com velas e árvores de Natal e a começarem a cantar a Noite Feliz. Numa guerra de trincheiras, no terreno, disputada quase metro a metro, corpo a corpo, os britânicos ouviram e responderam com as suas próprias canções natalícias.
"Começamos a cantar O Come, All Ye Faithful e imediatamente os alemães se uniram cantando o mesmo hino em suas palavras latinas, Adeste Fideles. Que coisa extraordinária - duas nações inimigas entoando o mesmo cântico no meio da guerra", escreveu o fuzileiro Graham Williams, da 1.ª Brigada de Fuzileiros de Londres, numa das várias cartas de guerra que serviram para recriar o acontecimento, em conjunto com depoimentos de sobreviventes ao longo dos anos posteriores.
Ingleses e alemães cantaram juntos e acordaram encontros em no man"s land, as chamadas terras de ninguém, fora do controlo de um ou de outro exército, onde se trocaram recordações, ofereceram-se cigarros e bebidas e, algures pelo meio, uma bola terá saltado. A partir daí, debatem-se os contornos da lenda.
"Eu passei muitos anos a fazer pesquisas sobre a trégua de Natal, a vasculhar diários de guerra, a mergulhar nos jornais da época no Museu da Guerra Imperial. O que eu concluo de todas essas investigações feitas é que não podemos encontrar nenhuma prova evidente de que um jogo de futebol tenha acontecido. Há muitos relatos de que foi discutida a possibilidade de realização de um jogo de futebol, mas não de que tenha sido concretizado", defendia Mark Connelly, professor de História Militar Britânica na Universidade de Kent, em 2014, no ano do centenário da Trégua de Natal da I Grande Guerra. "Há alguns registos de que uma bola surgiu entre os soldados durante a trégua, mas não há rigor histórico para se afirmar que houve um jogo de futebol", acrescentou, à BBC.
Taff Gillingham, outro especialista britânico, que serviu de conselheiro para a campanha publicitária com que a cadeia de supermercados Sainsbury"s assinalou o centenário desse jogo de Natal, contrapõe que há provas descobertas ao longo dos anos que sustentam uma parte da lenda. "Temos de ser claros: o que aconteceu não foi um jogo de futebol competitivo convencional. Mas houve uma peladinha entre os dois lados, um momento de recreação, com uma bola."
A lenda de um jogo de futebol ganho pelos alemães por 3-2 terá sido alimentada sobretudo a partir de um conto do poeta e ex-soldado britânico Robert Graves, que se alistou na I Guerra como fuzileiro. Em 1962, escreveu a sua versão da Trégua de Natal, romanceada, onde faz alusão ao jogo: "Nós providenciámos a bola e utilizámos macas a servir de postes das balizas. O reverendo Jolly, o nosso padre, fez de árbitro. Eles [os alemães] ganharam-nos por 3-2, mas o nosso padre teve um espírito demasiado cristão - o golo da vitória deles foi num claro fora-de-jogo, que o próprio jogador alemão admitiu no final da partida."
A versão ficcionada de Graves entrou no imaginário coletivo e deu origem a várias referências na cultura popular ao longo dos anos, em registos tão diversos quanto o da série cómica inglesa Blackadder, do videoclip de Paul McCartney para a música Pipes of Peace, em 1983, a música All Together Now, dos Farm, em 1990, ou o filme francês Joyeux Noel" de Christian Carion, em 2005, todos eles com referência a uma partida de futebol durante a Trégua de Natal de 1914.
Agora, a lenda é alimentada de forma oficial pelas entidades do futebol, que cuidam da força simbólica do jogo para reforçar o poder universal do futebol. Desde 2011, a Premier League organiza em Ypres, na Bélgica, o Torneio das Tréguas, uma competição internacional dedicada a equipas sub-12. E em 2014, no ano do centenário, a UEFA inaugurou na cidade um monumento evocativo do papel desempenhado pelo futebol nessa Trégua de Natal que, por momentos, fez parar a I Guerra Mundial.
Na altura, no entanto, nem o futebol evitou que a carnificina se prolongasse por mais quatro anos e acabasse com mais de dez milhões de vidas. Assim que as notícias das tréguas natalícias, que se multiplicaram por várias frentes de batalha, chegaram aos ouvidos dos comandos superiores, a ordem para voltar às armas foi imediata. A ameaça de prisão e fuzilamento dos prevaricadores foi suficiente para fazer desaparecer o espírito pacifista. As bolas desapareceram, voltaram as balas. Entre as denúncias feitas sobre o período de tréguas, constava uma de um jovem cabo de infantaria do Exército alemão. "Essas coisas não deviam acontecer em tempo de guerra. Os alemães perderam todo o senso de honra?" Assinado: Adolf Hitler.