O futebol devia ser proibido?

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Quase todas as semanas lemos notícias sobre insultos a árbitros, pancadaria entre adeptos, agressões nos jogos. Em Portugal e por essa Europa fora. Ninguém liga. Até sorrimos e trocamos piadas com os colegas de trabalho, à segunda-feira, sobre a insanidade dos dias precedentes.

A polícia é mobilizada aos milhares para controlar desacatos à porta dos coliseus, para encaminhar multidões encarneiradas até ao redil ululante ou para algemar psicopatas de fim de semana, numa rotina violenta que quase não é notícia, tal é a normalidade com que encaramos o jogo de lançamento de petardos, de garrafas ou de pedras com que certas claques se entretêm a profissionalizar e a rentabilizar uma metódica, putativa e lucrativa "paixão", palavra com que, por sua vez, governantes, autarcas, deputados, académicos, juristas, escritores, jornalistas, gestores, banqueiros ou economistas, gente que domina e controla o poder, gente que manda, gente que decide, gente que influencia, desculpam o seu próprio comportamento bestial, mal-educado, grosseiro, estúpido.

Porque achamos normal e aceitamos ver, todas as semanas, 50 mil pessoas, muitas delas incapazes de levantar a voz no emprego face a um chefe injusto, em casa perante um abuso de um cônjuge ou, até, numa loja onde foram enganados por um comerciante, chamar, em uníssono, "ladrão" ou "filho da puta" a um árbitro que nunca lhes fez mal na vida?

Porque achamos normal ver tanta gente trabalhadora, esforçada na vida, cidadãos exemplares, a perder qualquer réstia de dignidade frente a um jogo que, supostamente, deveria diverti-los?

Porque tantos pais e mães de crianças se dedicam ao palavrão mais carregado à frente das crias que pretendem educar?..

Eu gosto imenso do futebol mas sou obrigado a afastar-me dele. Aos estádios, quando a norma do "gatuno" dos velhos tempos gritado ao juiz de partida passou a cuspidela para o campo contra o fiscal de linha, deixei de ir. Não quero ser cúmplice.

Na televisão gosto de ver os jogos mas tudo o resto me repugna: as reportagens infantiloides, os comentadores de gramática embaraçada, os adeptos a disputar taças de fanatismo, os dirigentes de discurso criminoso. Não quero sofrer.

E o pior de tudo são os programas televisivos de análise à jornada: horas de trocas de insultos, de sectarismo imbecil, de traficância de interesses descarada. Não quero vomitar.

O futebol é bonito mas quase tudo o que está à volta do futebol é feio. E tudo o que é feio à volta do futebol contaminou a sociedade: o tom com que hoje, por exemplo, se discute política no Parlamento ou nos meios de comunicação social; a maneira como as pessoas usam as redes sociais para a catarse das suas frustrações; o grau de intolerância com que tantos encaram o outro que lhe é estranho devem muito a décadas desta aculturação tribal, guerreira, incivilizada, a esta febre já diagnosticada há tantos anos pelo sociólogo Desmond Morris... E ainda sem cura!

E também há a corrupção, o dinheiro a escorrer a rodos, a permanente suspeita de vigarice...

Eu gostava que alguém salvasse o futebol: uma riqueza, uma estética, uma expressão para o talento genial, uma geometria variável, um bailado imponderável, uma afirmação coletiva, uma luta leal, uma ciência, um foco de união, uma identificação nacional, uma conquista... em suma, um desporto.

Não, não proíbam o futebol. Amem-no, salvem-no do atraso civilizacional!

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