O Foquinha partiu há um ano e levou as gargalhadas com ele

Mário Veríssimo foi a primeira vítima mortal em Portugal, a 16 de março de 2020. Tinha 80 anos. Foi enfermeiro no Hospital de Santa Maria, fisioterapeuta e massagista no Estrela da Amadora e na seleção. Família ainda não fez o luto, reviveu o drama com a infeção da neta Margarida e ainda lida com os problemas ligados à restauração.
Publicado a
Atualizado a

O luto ainda não foi feito. A perda do Foquinha, como era carinhosamente tratado Mário Veríssimo, ainda mexe com os canais lacrimais dos familiares. Eles são daqueles que "sofrem para dentro e olham em frente", mas não é fácil conter as lágrimas e, por vezes, a rede falha nas videochamadas... que é como quem diz, leva as culpas pela voz embargada de quem não quer (ou não consegue) admitir a saudade, para não preocupar quem está do outro lado.

A filha Paula ainda não consegue falar do pai sem chorar e, por isso, delegou as memórias na filha Margarida e no marido, Francisco. A família criou uma bolha própria e recusou várias vezes falar à comunicação social. Entendem o interesse, mas para eles Mário não é "apenas" a primeira das 16 694 vítimas mortais da covid-19 em Portugal até hoje. Para eles era um homem prestável e dedicado à família, alegre, extrovertido, refilão e sem filtro, alguém que adorava contar piadas e anedotas. "A família é toda muito forte psicologicamente, somos todos de ir à luta, de reagir, mas há uma enorme tristeza, os sorrisos saem tímidos", confessa ao DN o genro Francisco Martins, destacando as saudades das "gargalhadas provocadas pela gargalhada dele".

Mário, que morreu com 80 anos, era casado com Florinda há quase 60. Eram muito "agarrados um ao outro" e em todos os aniversários de casamento Mário oferecia uma flor à esposa e faziam uma viagem juntos. Em 2020, a viagem ficou por fazer e passou a ser ela a levar-lhe flores a ele, ao cemitério. Só a verbalização dessa rotina causa arrepios na neta Margarida, que não sabe "se reagiria tão estoicamente" como a avó se perdesse o amor de quase 60 anos. "A avó diz que está tudo bem, mas por vezes eu sinto tristeza nas palavras dela. Neste mês estamos todos a prender as lágrimas, a engolir palavras e exageramos nas videochamadas para o recordar e não pensarmos tanto que está a fazer um ano", confessa a enfermeira no Hospital de Santa Maria, lembrando que a mãe todos os sábados vai ao cemitério.

A morte de Mário Veríssimo foi notícia no país, por ser a primeira, por significar o pior que a pandemia significava. Um abrir de olhos e um alerta. Tudo o que a família dispensava que fosse. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa lembrou a morte quando falou ao país, ligou três vezes à família e deu o contacto pessoal caso precisassem de alguma coisa. A diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, também "foi incansável", na tentativa de sossegar as interrogações da família, mas ainda há perguntas sem resposta.

Remexer no assunto ainda é traumático. Mário foi internado com uma crise pulmonar igual a tantas outras que já o tinham atormentado. Foi enfermeiro-chefe no Hospital de Santa Maria, no serviço de ortopedia, durante anos, e tinha de lidar diariamente com o pó com que fazia o gesso para os doentes com fraturas. Isso criou-lhe lesões nos pulmões. A cada quatro ou cinco anos tinha crises e era internado durante um ou dois dias para fazer tratamento. Foi isso que, no início de março de 2020, o levou ao hospital - o mesmo onde tinha servido, e de onde já só saiu sem vida. "Quando o visitei e o vi pela última vez com vida passeámos nos corredores do hospital. Ele só queria falar de futebol e dizia que ia ter alta no dia a seguir. Estava porreiro, não tinha tosse nem nada, mas começou a piorar e deixou de ter visitas dias depois, entrou nos cuidados intensivos numa quinta-feira e na segunda-feira seguinte morreu", recorda o genro Francisco.

DestaquedestaqueFlorinda viu partir o amor de quase 60 anos. Mário oferecia-lhe sempre uma flor no aniversário de casamento. Agora é ela que lhe leva flores ao cemitério.

Algures neste processo, a família ficou a saber que ele estava infetado com covid-19. Mas como? E onde? "Isso é o que falta saber", atira o genro. Todos fizeram o teste e ninguém estava infetado. Por isso, "o mais lógico", segundo Francisco, é ter sido algum doente ou médico a infetá-lo já dentro do hospital.

Devido à pandemia, o funeral foi "atípico", só com a mulher, Florinda, os dois filhos, Paula e Mário, e os netos Inês e João Dinis. A neta Margarida já não pôde ir. Entretanto, também ela testara positivo: "Assisti ao funeral por videochamada. Vi uma urna a sair de uma carrinha e a entrar no crematório."

Ainda não tinham enterrado Mário e já a família revivia o pesadelo, com a infeção de Margarida. Ela não precisou de ser hospitalizada, mas teve sintomas da doença, incluindo falta de ar e cansaço. Por vezes nem conseguia formalizar uma frase quando os pais lhe ligavam, de hora a hora, a perguntar se estava bem: "Foi o reviver do pesadelo, com as interrogações à volta na cabeça: "Vai ficar bem, não vai, vai ter sequelas...?" Psicologicamente isso mexeu com eles. Foi o fazer o luto com receio de uma nova perda..."

Ela herdou "muita coisa" do avô, como o lado brincalhão, o amor pela enfermagem e os cuidados com o outro, que descobriu por volta dos 16 anos, quando ia com ele para o Estrela da Amadora, clube que serviu como fisioterapeuta e massagista por mais de 30 anos. "Eu ficava maravilhada a vê-lo fazer curativos e massagens. Ele olhava para mim e dizia: "Metes os dedos aqui e sentes o músculo!" Ensinava-me o corpo humano, falava-me dos órgãos. Ele incutiu-me isso e acabei por seguir Enfermagem", recorda Margarida Martins.

Foi por acaso que acabou no mesmo hospital onde o avô fez carreira, o Santa Maria. Está no apoio pós-covid, na reabilitação de doentes que ficaram com sequelas da infeção. Vai trabalhar na esperança de um dia novo a cada dia que passa. Já foi trabalhar meio entorpecida e em piloto automático, e houve dias em que não foi nada fácil entrar no local onde o avô tinha morrido. "Vamo-nos habituando... ao medo, à incerteza, ao desconhecido. Houve dias em que me sentia mais frágil. O cansaço físico e mental, o vestir e despir os fatos, as horas infinitas sem comer, sem poder ir à casa de banho porque não há tempo, há muita coisa a acontecer e muitos doentes para tratar. Estamos muito cansados. Isto supera tudo. Basta alguém espirrar para alguém olhar de lado e questionar: "Será covid-19?" O medo vai ficar connosco algum tempo e vamos ter de valorizar a saúde mental, se não a tratarmos isto vai ter consequências graves", avisa a enfermeira.

E como está a saúde mental da família? "É complicado. Quando parece que já fizemos o luto, percebemos que em vez de um mês passou um ano. Para nós o luto não está completo. É um dia de cada vez, e felizmente há um suporte familiar muito grande", admite Margarida (27 anos), que jamais esquecerá que a covid-19 que lhe roubou o colinho do avô.

Os amigos estão em falta com o Foquinha, mas a culpa é da mesma covid-19 que os privou da sua companhia e fechou os restaurantes impedindo os reencontros em sua memória. "Após a morte dele, o senhor Marques Pedrosa ligou a dizer que não vinham, que não tinham coragem, que lhes faltavam as forças. Depois, um dia ligou-me a dizer: "Chico, põe mesa para seis", e quando chegaram eram apenas cinco. O empregado ia tirar um prato e ele disse: "Deixa estar, é para o Foquinha." Arrepiei-me todo", conta ao DN Francisco Martins, dono do Franguinho Real, em Arroios, onde Mário e os amigos almoçavam à terça-feira - e lembrando que este dia 16, em que se assinala um ano sobre a morte do sogro, é, por coincidência, uma terça-feira.

O grau de parentesco diz que Francisco era genro de Mário Veríssimo, mas ele via-o como o pai que nunca teve: "O apoio dele era muito importante, nunca me desanimou. Ajudou-me imenso, dizia-me sempre para seguir em frente."

O Foquinha, conta, "não dizia não a ninguém", nem aos amigos das futeboladas de domingo do genro: "E ajudava sem pedir nada em troca. Para mim ele tinha um dom, o dom de servir os outros. Não era médico, mas o prognóstico dele batia sempre certo."

DestaquedestaqueA neta Margarida é enfermeira e testou positivo dias depois da morte do avô. Acompanhou o funeral por videochamada e a família reviveu medos e preocupações.

E não gostava de "mariquices", segundo o ex-capitão tricolor Rebelo. A linguagem pode parecer arcaica e até desajustada, e os métodos algo rudes, mas para ele "a lesão nunca era grave, era tratável". Mesmo que fosse uma ferida aberta e a precisar ser suturada a frio. Que o diga a perna de Baroti, cosida atrás de uma baliza na Suíça, ou a língua de Rui Neves, suturada com seis pontos junto à linha lateral antes de o mandar para dentro de campo.

Foi para a Reboleira em 1976, desafiado por José Gomes, e só de lá saiu quando o clube acabou, em 2009 (ainda consta da lista de credores). Foi massagista principal e auxiliar dos médicos que passaram pelo clube durante mais de três décadas. Fez amizades com Jorge Jesus e Fernando Santos, entre muitos outros. Chegou a integrar a equipa médica da seleção nacional, na década de 1980. Privou com jogadores como Bento, Chalana, Nené, Jordão, Fernando Gomes, Carlos Manuel, entre muitos outros futebolistas de uma das maiores gerações do futebol português. "Era vulgar alguns jogadores dos grandes irem à Reboleira fora de horas para serem tratados por ele", revela Francisco Martins.

Estando ligado ao setor da restauração, um dos que estão a ser mais afetados com a pandemia, o genro de Mário Veríssimo (e padrinho de Palhinha, do Sporting) orgulha-se de manter os sete empregados. Há já quatro anos que tinha um acordo com a Uber Eats e, por isso, quando os restaurantes fecharam, já tinha uma via alternativa de negócio.

"Nunca fechei, não entrei em lay-off, e isso ajudou à nossa saúde mental. Claro que tive de ir ao nosso mealheiro para fazer face às despesas. Há quase um ano que estamos com faturação a 30%-40%. As ajudas são fraquíssimas, nesta segunda fase ainda não tive qualquer apoio, mas temos de ser fortes para aguentar esta situação. E não é só por nós, é pelos nossos empregados e pelas suas famílias. A maioria deles são casados e têm mulheres em casa desempregadas, e nós temos de gerir isso e o facto de não termos clientes."

Para quem perdeu um familiar, viu o negócio afetado e tem uma filha na linha da frente do combate à pandemia, era fácil dramatizar e dizer que isto está tudo mal, mas Francisco não vê melhor caminho. Mesmo que o negócio ainda tenha de sofrer mais um mês ou dois: "É preciso é não fazer asneira e desconfinar à maluca."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt