A escritora cubana Karla Suárez olha para as libretas que a mãe lhe deu na última vez que visitou a ilha e consegue perceber a evolução da economia de Cuba. A de 1989, ano da queda do Muro de Berlim, tinha o pão entre os produtos básicos subsidiados pelo Estado que se podiam comprar nas bodegas, mas a autora de Havana, Ano Zero lembra que a família normalmente comprava este produto noutras lojas e esse registo está quase vazio. Isso mudou com a dissolução da aliada União Soviética e a chegada do período especial. A libreta do ano 1993 está cheia na parte do pão - um por dia por cada membro da família -, porque este foi um produto que de repente só estava acessível dessa forma. "Para muitos, a libreta era a única fonte de alimentos nesses anos de crise profunda", contou ao DN. A libreta é o nome pelo qual é conhecida a caderneta de abastecimento que desde 1962 permite aos 11 milhões de cubanos adquirir produtos básicos a preços subsidiados - arroz, açúcar, feijão, leite ou até tabaco, entre outros - nas chamadas bodegas (as lojas de bairro). Foi criada por Fidel Castro para racionalizar e garantir os alimentos necessários a todos os cubanos, independentemente da raça, sexo ou idade, mas já há quase uma década que o governo, então liderado pelo seu irmão Raúl Castro, defendia que era necessário acabar com ela, dizendo em 2011 que a iniciativa custava mil milhões de dólares por ano. Agora, o presidente Miguel Díaz-Canel reiterou na televisão cubana que a libreta, que caminha para os 60 anos, tem os dias contados, devendo desaparecer depois da esperada unificação monetária. Esta irá eliminar o peso convertível (CUC, criado em 1994 e paritário com o dólar), deixando como única moeda o peso cubano (CUP, equivalente a quatro cêntimos de dólar). Mas ainda não há data para essa medida, que implicará também uma reforma salarial e das pensões, que aumentarão para acomodar a inflação esperada. O salário médio em Cuba é de 879 CUP, menos de 30 euros. A notícia surge contudo numa altura em que Cuba atravessa uma grave crise económica, por causa do agravamento das sanções comerciais e financeiras impostas pelos EUA nos últimos anos e pela perda do apoio venezuelano. E quando, em plena pandemia por causa da covid-19, a libreta ganhou novo fôlego, sendo usada também na compra de outros produtos para evitar o açambarcamento de bens..Quando Karla era criança, era normal serem feitas trocas entre vizinhos ou até vendas. "Como os produtos custavam pouco, toda a gente comprava tudo, e, nas coisas que não usavas, então trocavas ou vendias", explicou a escritora, que vive há 15 anos em Portugal e coordena o clube de leitura do Instituto Cervantes. "Na minha casa não se comia muito açúcar ou arroz, então a minha mãe arranjava sempre forma de trocar o que sobrava por leite", refere. Se quando era criança era normal a mãe abastecer duas vezes por mês, já na década de 1990 - quando a libreta foi ficando mais pequena por falta de bens - havia fila quando chegavam os produtos. "A amiga da minha mãe telefonava e dizia: chegaram os ovos. Tinha passado pela bodega e havia fila e ela perguntava o que havia. Então a minha mãe ia também para a fila. E às vezes quando chegava a tua vez podiam já ter acabado", conta. Mas a melhor lembrança que tem da libreta era de quando esta dava brinquedos. Não no Natal ou no Dia de Reis, como é tradição em Espanha, mas em julho. Primeiro era preciso participar num sorteio, para saber em qual dos seis dias em que as lojas se enchiam de brinquedos tinha direito a ir comprar o seu. "No primeiro dia havia muita escolha, mas ao quinto já não era muito variada", recorda. Era uma questão de sorte. Victor Guerra, ex-diplomata e coordenador da Associação de Cubanos Residentes em Portugal (vive cá desde 1999), é mais velho do que a libreta e recorda-se de outra caderneta de abastecimento, a do vestuário e dos produtos industriais. "Cada comité de defesa de cada bairro convocava as pessoas quando chegava material. Imagina, chegavam duas camisas, tu podias comprar, mas depois já não tinhas direito a mais", referiu ao DN. Essa libreta desapareceu nos anos 1990. Questionado sobre a decisão de acabar também com a libreta dos alimentos, Guerra diz que a medida parece consensual: "A toda a gente lhe parece bem acabar com a libreta. Mas, como disse o presidente, primeiro tem de haver alterações a nível económico, dos salários, das pensões. Não é fácil, não pode ser de um dia para o outro. E tens de garantir que os produtos continuam a existir nas lojas, que não haja falta de nada e não haja especulação dos preços", explicou.