Há uma velha máxima nas adaptações literárias: a literatura é a literatura e o cinema é outra coisa. Mas a outra coisa que o João faz já está a ganhar algo que é do carácter experimental. Em O Ano da Morte de Ricardo Reis a palavra fusão já nem chega. Tenho adaptado textos, romances, o teatro do Garrett, a Agustina, mas cada um tem o seu tratamento..Está a dizer que não é uma fórmula? Não é uma fórmula! Eu mudo. Aquele texto, aquela matéria, obriga-me a mudar. Este não tinha uma outra alternativa que não fosse voltar atrás, a uma ideia do cinema...Isto é sobretudo uma lição de história, mas também tem uma lição de cinema. Há uma certa inocência, o preto & branco, as elipses... Enfim, as brincadeiras que se faziam no cinema. Sou um tipo do cinema do tempo, não sou do movimento. Mas, atenção, há um cinema do movimento que é interessante, em que há a velocidade e os jovens hoje concentram-se nisso, embora eu me concentre no tempo..O tempo não pode ser também veloz? A ideia do tempo, ver e ouvir, é muito complicada hoje. Quando olhamos para um quadro mais do que dois segundos, já é complicado. Nestes dias, o que me incomoda muito é que os miúdos estão a mudar o tamanho do ecrã: reduzem! Os jovens que vão ao cinema, em plena sala, já olham mais para o ecrã pequeno. Só de vez em quando é que olham para o ecrã grande, já reparei nisso. Eles estão sempre a olhar para os iPhones e creio que mais cedo vão começar a precisar de óculos. A ideia da visão e do som alterou-se completamente. Não tenho nada contra, mas é diferente da minha ideia de cinema - sou de um cinema em que a pessoa se sentava, via, ouvia e se inquietava. Hoje a velocidade é completamente diferente. Até acho que a covid deu jeito: as pessoas pararam um bocadinho. Mas quando diz que faz coisas diferentes em cada adaptação está sempre a reforçar que é impossível fazer literatura em cinema, não é assim? Exato. O ideal num romance destes era capturar a sonoridade do Saramago, coisa de que gosto muito. Sabe, o melhor era colocar alguém a ler o livro em voz alta. Mais nada!.Audiobook. Sim, audiobook! Mas depende sempre do som, do encantamento da sonoridade - cada um tem a sua sonoridade. A sonoridade do Filme do Desassossego não era esta, nem a da Peregrinação nem a da Agustina! Há uma matéria e uma sonoridade que marca! Tem que ver com a maneira de escrever, o Saramago não tem vírgulas, os parágrafos são enormes e não sei quê. Tentei adaptar-me um bocado àquela matéria resistente, não alterei nada, apenas cortei. Não se pode alterar o texto de um grande escritor, acho mesmo isso. Aquilo é uma coisa como a luz, a sombra....Diria que aquilo que o João faz não é ilustrativo? Não fica porque é outra coisa. Crias um encantamento que não é ilustração, passa para além disso. Depois há um artifício que é a recusa do naturalismo. É uma ideia. Trata-se de filmar 1936, o fascismo. Sigo ideias... Ninguém nos meus filmes salta para dentro do ecrã, ninguém, é impossível! Não existe nenhuma identificação com nenhuma personagem, apenas, eventualmente, com ideias..Mas depois isso não faz ficar o filme frio? O filme fica frio. Fica..Fica e pronto. O filme fica mesmo frio. Há filmes frios, mornos e filmes quentes..Não faz talvez mal ficar frio pois O Ano da Morte de Ricardo Reis tem o fantasma de Pessoa. O cinema permite isso tudo. Eu gosto da Gene Tierney apaixonada pelo Rex Harrison em O Fantasma Apaixonado (1947)... Mas no Saramago há muito que vem do Pessoa, embora haja algo que é mesmo dele: este fantasma tem desejos, tem paixões, é carnal... Isto é quase um western - dois cowboys com duas mulheres que perturbam. Um deles é o criador e depois não está para aturar aquilo e leva a criatura com ele. Mas o personagem principal aqui é o ano de 1936 e aí o Saramago fez um trabalho exaustivo, a exposição que está na Casa Saramago mostra isso. A pesquisa dele é incrível e depois tem duas ideias que me marcaram imenso. Uma que é aquela que depois da morte andamos nove meses por aí, o equivalente aos nove meses da gestação. A outra é aproveitar o facto que Pessoa se esqueceu de dar a morte ao heterónimo - não há morte para Ricardo Reis... Logo ele que tinha feito um horóscopo a anunciar a sua morte. É inacreditável! O Saramago foi muito esperto: tornar física a metafísica..Fica a ideia de que preza muito o conceito do conto de fantasmas, por muito que depois surja o realismo fantástico. É algo muito aberto. Sim, mas é o conto de fantasmas. Edgar Allan Poe e depois o cinema permite isso, tanto mais porque as pessoas acreditam. Aliás, as pessoas não acreditam no naturalismo daquilo mas acreditam na sua possibilidade..Acreditam até mais na poesia disso, não? Sim, porque é que eu filmo a preto & branco? Também era impossível filmar 1936 a cores, a não ser que tivesse muito dinheiro. Não há dinheiro! Tive de poupar para ter muitos figurantes. Este filme é caro. Custou um milhão e meio de euros! Se fosse a cores e de época custava dez! Eu nunca faço filmes de época... O barco, por exemplo, é um telão! Mas é um telão impresso, com 30 metros por 20..À grande... À grande o telão, à pequena a verosimilhança. Seja como for, é importante que as pessoas percebam que seis meses antes das rodagens não vou ao cinema mas depois estão lá uma data de coisas. Está lá o m>Marnieem>, do Hitchcock, por exemplo..Isso é a memória, diria que não há nada a fazer... São brincadeiras. Lembro-me que nos Tempos Difíceis (1988) pus o gajo mais velho a beijar os pés à menina na noite do casamento e passados uns tempos percebi que um Stroheim tinha a mesma coisa! São coisas que acontecem, a memória não nos larga. O que é engraçado é que o cinema não dá lições de nada, apenas dá lições de cinema. Havia um tempo em que o cinema tinha uma certa celebração, onde surgiam muitas camadas e as pessoas tinham tempo e até eram capazes de ver o mesmo filme umas quatro ou cinco vezes, mas agora isso acabou..Iluminou as atrizes deste filme como anjos. Pois foi. Fizemos uma luz própria para a Catarina Wallenstein e outra mais precisa para a Victoria Guerra. Elas não são pessoas reais..E isso dá muito trabalho, não dá? Muito. Mas fica diferente, quando o cinema fica muitas coisas diferentes é maravilhoso, mas é claro que, se fizer uma comédia espanhola, estampo-me. Se fizer um policial francês, estampo-me e o mesmo acontece se fizer aventuras à americana. Só que em Portugal posso fazer isto..Mas neste filme há uma certa ambição, certos planos têm uma escala algo grandiosa... Pois têm! Sim, muitos contrapicados, muita gente. O comício do Campo Pequeno tem milhares de pessoas e são todas figurantes! A coisa tem escala! Não poderia fazer de outra maneira... Por outro lado, há outras coisas: fizemos Fátima no Campo de Tiro de Alcochete e aí basta a camioneta verdadeira da época... [risos]. Chega! E isso já dá verdade. Enfim, gosto muito deste texto e do Saramago. Ainda hei de fazer o Levantado do Chão, mas este romance era muito cinematográfico, o resto é muito complicado..E O Ano da Morte de Ricardo Reis dará jeito aos alunos do 12.º ano. E ajuda um bocadinho... mas digo sempre que o livro é melhor do que o filme, sobretudo porque o filme tem o meu ponto de vista. No livro uma pessoa pode viajar..Falamos de Saramago em cinema e há quem pense que as adaptações não têm tido muita sorte. Não gosto nada do Ensaio sobre a Cegueira e gosto do Fernando Meirelles pessoalmente. Aquilo não correu bem..Jangada de Pedrae, de George Sluizer, também não... O problema é os produtores. Eu tenho um produtor porreiro, o Alexandre. Ele apoia as invenções esquisitas que quero fazer..É difícil adaptar Saramago? É! Ele é um bocado pomposo, às vezes..Não gosta de O Homem Duplicado, de Denis Villeneuve? Não vi!.Voltando ao preto & branco, estamos numa altura em que parece moda. Tivemos Roma e recentemente surgiu no Festival de Roterdão a versão sem cores de <em>Parasitas, o vencedor dos últimos Óscares, já para não falar que está quase a estrear-se o novo do Philippe Garrel, também a preto & branco. Há um ressurgimento desta opção? Diria que sim e também um ressurgimento do cinema mudo. Creio que o cinema foi para uma velocidade enorme no entretenimento. E isto não é uma questão portuguesa, é universal. Oitenta e tal por cento das pessoas que vão ao cinema são miúdos com menos de 18 anos que começaram a ir às salas ver filmes de desenhos animados e depois passam para os filmes de super-heróis. Depois dos 18, 19 anos deixam de ir ao cinema. Ficam em casa a ver filmes nos iPhones e nos computadores, enquanto os adultos apenas vão de vez em quando. Porque é que os grandes argumentistas e atores estão nas séries? O pessoal ficou em casa. Ninguém sai! Com Os Maias apanhei de repente um ano em que os alunos foram ao cinema. Eles achavam que conheciam esse livro ou coisa assim. Hoje em dia isso já é muito difícil pois no cinema a algazarra é de crianças..O que fica também muito saliente é a forma como vinca as mudanças de cenas com implacáveis raccords. Chega a entrar para dentro de uma chávena de café. Isso era importante para si a nível de separações de momentos? Sim, o filme está cheio de elipses e de brincadeiras dessas. Adoro elipses, um realizador não faz nada, tem de ser o espectador..Já disse também que fez este filme para não nos esquecermos do exemplo do passado a fim de lidarmos com estes novos populismos. O João está assustado com este ressurgimento da extrema-direita em Portugal? Ainda não, mas assusto-me com o que se está a passar no mundo..O Chega não lhe mete medo? Não, só quando ele se casar com a Cristina Ferreira. O Ventura aí domina Portugal [risos]..Não lhe chega ser presidente do Benfica? Não, aí vai preso. Devia estar tudo preso já, o Jesus, o Vieira... presos por incompetência desportiva, mais nada! O Jesus prometeu arrasar e eu é que fiquei arrasado [com a eliminação para o acesso à Champions]. Agora a sério, cá em Portugal o perigo é menor. Temos bom tempo... Mas, de qualquer maneira é perigoso. O importante não é atacar o Chega mas sim as coisas que permitem o Chega. Há milhão e meio de pessoas a verem o Big Brother e o perigo começa aí. Devíamos era atacar os donos das televisões. Também um milhão e meio de pessoas vê Quem Quer Namorar com o Agricultor, é a mesma merda!.Vai tentar fazer uma digressão a comentar o filme por todo o país? Depende da covid... Neste ano é muito, muito complicado. Agora acho que os alunos já não podem estar juntos nas camionetas. Não sei, mas a introdução que explica quem é o Saramago e o Pessoa já é para os miúdos. Mas se isto não melhorar agora, deixo passar uns tempos e vou para os cineteatros e, se calhar, projeções ao ar livre, por exemplo em frente à Casa dos Bicos, e adorava também fazer em frente ao Terreiro do Paço com um ecrã grande - as pessoas precisam de ver cinema ao ar livre..Porque é que o filme não está num grande festival? Atrasei tudo devido à covid e depois tentei Veneza. Não correu bem, queria estar naquela secção dos autores e o Barbera [o diretor do festival] disse não e não, que queria na competição, mas depois, à última hora, deixou cair. Mas vai a festivais, vai, vai! Começa na Mostra de Cinema de São Paulo e depois vai ao Festival de Sevilha numa sessão especial para fazer uma homenagem a mim e ao Saramago. Depois vai andar por aí. Vou também tentar Roterdão e outros festivais mais pequenos. É importante: o filme tem de sair do país. Trata-se de Pessoa, Saramago e cinema! E já não há cinema! Um filme agora tem cinco mil planos e alguma vez vemos cinema?! Alguma ideia num filme com três mil efeitos sonoros?! Nesses filmes já não se consegue ver onde está a câmara..Sei que não tem redes sociais... Não tenho..Sim, mas terá percebido que a vitória em Veneza do Listen, de Ana Sousa, criou uma guerrinha entre fações do cinema cá em Portugal? Isso passa-lhe ao lado? Quem é a Ana Sousa? Mas acha que eu ligo aos filmes de Veneza!? Olhei para a lista e os filmes eram todos iguais. Raramente Veneza passa um grande filme... Passam grandes histórias, grandes atores, mas agora já não há a luz e a sombra. Não há um ponto de vista..Não lhe interessa agora nenhum cineasta? Gosto muito de alguns americanos. O P.T. Anderson e os Coen são bons e acertam. No outro dia vi um filme do Haneke, nunca tinha visto. <em>O Laço Branco é mesmo bom! Filme terrível! Mas é tudo tão minoritário que passa ao lado. O Godard não estreia um filme nas salas há anos..Olhe que o Godard tem estreado... Sim, mas numas coisinhas pequeninas, em salinhas. A verdade é que uma pessoa vai ao IndieLisboa e aquilo está cheio, só que significa para um filme apenas uma ou duas sessões. Depois disso acabou... O problema é que não há cinemas de arte & ensaio. Temos apenas o Ideal e o Paulo Branco no Nimas a fazer retrospetivas. Por acaso, no Porto, há o Américo, que adoro, com o Trindade... E o Trindade é mesmo cinema, nem café tem! É por isso que os melhores cineastas estão muitas vezes agora nas séries..A solução passa por o Estado apoiar as salas de cinema? Nem sei... A seguir a ter andado a dar a volta ao país com o Filme do Desassossego o ICA inventou uma coisa chamada o Plano Nacional do Cinema com uma série de títulos. Era uma ideia que até funciona mas que nunca foi feita. As pessoas pensam "ai que canseira! Agora levar os miúdos ao cinema...". O problema em Portugal está na educação..A coleção das adaptações aos grandes autores prossegue... Vou já fazer outro. Já ganhei o subsídio, é o O'Neill. Chama-se Um Filme em Forma de Assim. Adoro o Alexandre O'Neill, provavelmente o primeiro pós-moderno português. Tem coisas incríveis, textos, pequenos contos... O que vou fazer não é biopic, é loucura. Vai dar para brincar com muita coisa, com o surrealismo e com o pós-surrealismo. Acima de tudo, é português, é o trocadilho levado ao limite da arte..Lobo Antunes não o atrai? Porque não? Não sei... Vamos ver. Sabe do que gosto muito? Aqueles textos pequeninos que ele escrevia para a Visão, aquelas maravilhosas histórias da vida. Mas o outro [Ivo Ferreira] fez bem o Cartas da Guerra...O problema do Lobo Antunes é que às vezes é caro: tem aquela coisa das guerras, das colónias, e isso é caro.