O festival de fotografia em que elas são maioria

Sem discurso sobre feminismo, uma história da chegada das mulheres à fotografia na 19.ª edição do festival espanhol.
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A britânica Shirley Baker (1932--2014) viveu no tempo em que o sindicato dos repórteres não permitia a entrada de mulheres. Esse facto não a impediu de documentar a vida nos bairros de Salford, onde nasceu e cresceu, e Manchester, durante 20 anos, enquanto assistia à degradação do centro da cidade, então ainda com fábricas, e à demolição de casas da classe operária. É dela uma das exposições que se podem ver no festival PhotoEspaña, em Madrid.

Apaixonada por fotografia desde os 11 anos, quando um tio lhe deu uma máquina, e licenciada em Fotografia, Baker interessou-se por uma realidade que não era a sua (era filha de industriais) e, quase sempre com a lente apontada para mulheres, crianças e homens que deixam passar o tempo, como título da própria exposição no Museu Cerralbo, até 4 de setembro. É para a curadora, Anna Douglas, um aspeto importante, "político", que ela mostre tantos meninos a brincar. "No meio da dificuldade, há sempre algo positivo."

A mostra dedicada ao trabalho de Baker é uma das várias cujo ponto de partida foi "pagar a dívida" para com os artistas poucos mostrados no PHotoEspaña, segundo a sua diretora, María García Yelo. E basta uma leitura rápida do programa para ver que foi a mulheres que o reconhecimento faltou. O ponto de chegada do festival é um retrato das mulheres na fotografia.

Juana Biarnés, a primeira fotojornalista espanhola

"Sinto-me na montra do El Corte Inglés", diz Juana Biarnés, sorridente e algo irónica, sentada numa cadeira à entrada da sua exposição, Contracorrente, que por estes dias se pode ver no Centro Cultural La Villa, em Madrid. Desde os anos 1980 que não mostrava o seu trabalho numa grande exposição. Chema Conesa, curador, quis tirar da sombra aquela que é considerada a primeira fotojornalista espanhola, filha de fotógrafo, e exemplo de resistência. Juana sobreviveu ao machismo dos anos 1950, mas não aguentou os caminhos que tomava o jornalismo do coração, remate de uma história que começa nos bancos de escola.

"Fui muito má estudante", confessa Juana, nascida em 1935. Era para agradar ao pai que ia para a câmara escura. "Tudo o que fiz foi para o deixar orgulhoso." Foi com ele que fez os primeiros disparos. Estavam juntos numas cheias na Catalunha natal, a fotografar, e essas fotos acabariam nas páginas do jornal El Pueblo. Refere a influência do progenitor amiúde. "Se fazes o trabalho bem feito já terás um início", dizia-lhe. Com ele aprendeu que "podia tirar um rolo inteiro de um acontecimento", mas, ainda assim, "a foto, A Foto, tem de estar no rolo, aquela que impacte quem vê".

"Os meus inícios foram duríssimos", começa, abrindo logo uma exceção - "entre os companheiros fotógrafos jamais tive uma cotovelada, sempre respeitaram o meu trabalho". Mas "tropeçava com o sistema e com a política de então". "O generalíssimo queria que estivéssemos em casa a cozinhar para o marido boas sopas." Nos estádios de futebol chamavam-lhe porca e mandavam-na lavar pratos. Ela respondia: "Não me olhe como um homem mas como fotógrafo."

E, admite, também tirou partido de ser mulher. "Se ia a um sítio onde o senhor [fotografado] perdia o oremos [a cabeça] por uma mulher, punha uma saia mais curta." [Risos] Foi assim que conseguiu entrar no camarim dos Beatles, entrevistá-los e fazer-lhes fotos. Estão aqui Julio Iglesias, Isabel Preysler com a filha mais velha ao colo, o momento em que Maciel elege o vestido Courrèges com que venceria a Eurovisão, o toureiro Luís Miguel Dominguin e Salvador Dalí na sua casa de Portlligat... "Tinha um livro de arquivo e muita coisa escrita", diz. Recuperou-os para dar pistas sobre as portas e fazer as legendas.

Nos anos 1980 bateu com a porta. Desencantou-se no dia em que propôs uma reportagem com um homem, doente oncológico, que fazia terapia de grupo e o diretor da revista lhe disse: "Isto não vende." "Percebi que o caminho era Lola Flores vestida de rei mago." E não quis. Dedicou-se a outra paixão, que talvez Franco gostasse mais: abriu um restaurante, Cana Joana (Casa Joana em catalão), em Ibiza, com o marido.

Fecharam em 2007 para se reformarem e retornaram à terra natal de Juana. "As minhas fotos estavam guardadas em caixas há 25 anos e achava que não interessavam a ninguém." "Juana tinha desaparecido e achámos que a tínhamos de reivindicar", declara María García Yelo. "Fui embora quando a fotografia ainda se revelava. Agora tenho uma que foca e revela por mim. Foi fantástico para mim, que só tenho 30% da visão", diz ela. Foi uma relação dura. "Estava chateada com as câmaras digitais. Tirei 600 fotos, mas era uma merda." Finalmente, adaptou-se à nova era. Tem um novo projeto entre mãos.

Cristina de Middel, a que não sabe dizer não

Para chegar à exposição de Juana Biarnés é preciso passar por outra, Muchismo, de Cristina de Middel, artista nascida quando Biarnés já tinha mais de duas décadas de carreira (Alicante, 1975). Partilham o Centro Cultural de La Villa e uma maneira desempoeirada de falar.

A diretora da PHotoEspaña chama-lhe a fotógrafa que "não sabe dizer não", Middel faz mais do que concordar. Trouxe a abundância para as paredes. Com as muitas versões dos seus trabalhos que foram sendo impressos, aumentados e diminuídos ao sabor das necessidades. "Eu própria aprendi muito do meu trabalho com esta exposição."

Foi fotojornalista, diz que ainda trabalha "como se estivesse na imprensa" e com a exposição pretende parar e repensar o trabalho pós-2012, altura em que publicou Afronautas, um livro de autor que se converteu num êxito, a partir do projeto espacial da Zâmbia, lançado após a independência do país em 1964.

Os primeiros trabalhos documentais carregavam a marca da repórter: "A verdade, o valor documental." "Quero lançar o debate sobre a quantidade quando a fotografia é ilimitada", diz. "Olho para a fotografia como uma palavra tirada do contexto."

Lucia Moholy, a que viu a Bauhaus por dentro

"Tenho-me na conta de alguém que sabe de fotografia e não a conhecia", diz a curadora Maria Milan numa visita de imprensa à exposição de Lucia Moholy, fotógrafa que conheceu por dentro a escola alemã Bauhaus, no início do século XX, entre 1923 e 1928. Foram os créditos de uma imagem que a conduziram ao trabalho desta fotógrafa, que, porém, já era nome conhecido entre designers industriais e arquitetos.

Lucia fotografou os Kandinsky, Wassily e Nina, entre outros artistas, na sala de casa, criada a partir da nova estética. Fotografou os produtos criados por Marianne Brandt, o edifício da escola de Dessau e o marido, Laszlo Moholy-Nagy. "A sua inteligência era como um farol, iluminando o meu caos emocional", disse ele em 1950. Divorciaram-se em 1928.

Fotografou apenas durante 15 anos, mas explorou vários géneros, representados na sala da Fundação Loewe: fotografia de arquitetura, de produto, retratos de gente da Bauhaus, umas quantas imagens documentais de uma viagem à Jugoslávia, uma ativista dos direitos das mulheres alemã, até o (possivelmente) mais famoso retrato que chegou aos nossos dias de Walter Gropius - o mestre com a cabeça entre as mãos.

A exposição ocupa uma sala, são 48 fotografias (impressões originais, algumas com notas no verso). Lucia Moholy produziu 600 fotografias e publicou um livro relevante - 100 Anos de Fotografia - Uma História Cultural da Fotografia, da qual foram impressos 40 mil exemplares. A guerra impediu-o de ser republicado, explica a curadora, que, mesmo assim, conseguiu encontrar dois que estão na exposição. Nos capítulos finais, Lucia Moholy prevê que seremos capazes de transmitir imagens, "como se estivesse a falar do Instagram". Morreu em Zurique em 1989, onde viveu 30 anos, depois de ter recuperado parte do seu trabalho.

As herdeiras de Inge Morath

Seguindo os passos de Inge Morath. Olhares sobre o Danúbio junta quatro mulheres fotógrafas que receberam o prémio com o nome da primeira mulher associada da agência Magnum para fotógrafas com menos de 30 anos numa exposição que pode ser vista na sede da Fundação Telefonica, até 2 de outubro.

O projeto, financiado com recurso a crowdfunding, nasceu em 2012, durante um almoço em Viena (no dia em que se conheceram): uma viagem pelo Danúbio, emulando a própria Morath, com um camião a funcionar como galeria de arte, parando em localidades, mostrando o trabalho em curso. "Sentimos que as pessoas nunca podem participar, o camião foi uma maneira de levar o projeto a pequenas comunidades", diz Claire Martin, australiana, uma das participantes. As outras são a norte-americana Emily Schiffer, a britânica Olivia Arthur e a espanhola Lurdes R. Basolí. Entre paragens, as fotógrafas, uma delas com a filha e outra grávida, fizeram os seus próprios projetos. "Ter família pode ser um obstáculo, não acreditamos que seja verdade e contrariamos essa ideia." Por outro lado, admite Claire: "Queríamos mostrar o feeling caótico da exposição." Está tudo lá.

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