Com perplexidade assisto ao retorno de uma discussão académica velha de mais de 50 anos, sobre a caracterização do regime ditatorial de Salazar (e de Caetano) e a sua inclusão, ou não, num modelo de fascismo genérico. A propósito do seu livro Fascismos para além de Hitler e Mussolini (DN, de 31/10), o politólogo Carlos Martins (CM), afirma: "Não se pode classificar o Estado Novo como fascista", mas de "conservador fascizante". Não li o livro, mas parece-me que a frase entra em contradição com o título, que pressupõe a existência de mais regimes fascistas, além dos de Mussolini e Hitler..As afirmações de CM suscitaram uma habitual reacção da opinião pública, em particular do jornalista Pedro Tadeu (DN, 2/11), segundo o qual não qualificar de fascista o regime ditatorial português é desrespeitar o sofrimento dos que o combateram, perderam empregos, a liberdade e até a vida. Embora não concorde, reconheço que há reais tentativas de branquear o regime ditatorial português, através de não o qualificar de "fascista", para desvalorizar a repressão, a censura e o colonialismo da ditadura de Salazar e Caetano, entre outras falsificações..O termo de fascismo - tal aliás como o de totalitarismo - surgiu na Itália, onde Mussolini chegou ao poder, há cem anos, após a "marcha sobre Roma" de 1922, provindo do nome que ele deu ao seu movimento, Fasci di Combattimento, por seu turno apropriado da Roma antiga. Respondendo ao gigantesco bluff dessa "marcha", o rei Emanuel III ofereceu a Mussolini a chefia do governo e o fascismo passou de movimento a um regime ditatorial de novo tipo..Este teve semelhanças com o regime de Hitler, algumas das quais existiram aliás com o salazarista e pode-se dizer que todas estas ditaduras fizeram parte de um conjunto de muitas outras que assolaram a Europa nos anos 30 e 40 do século XX. No entanto, as diferenças entre os dois regimes foram de essência e levam hoje a considerar-se exclusivamente de fascista o regime de Mussolini e a inserir o nacional-socialismo numa categoria à parte, totalitária. Por isso, estranho a afirmação de CM, segundo o qual só se poderia dizer as "isto foi "fascismo" foram a Itália e Alemanha Nazi"..A nível de regime, o nazismo teve uma dinâmica ideológica racial e elevou a Volksgemeinschaft ("comunidade nacional") e a sua política expansionista foi caracterizada pela vontade de domínio racial total e baseada na conquista de Lebensraum ("espaço vital"). Sobretudo o Holocausto (Shoah) distingue radicalmente o regime de Hitler de outras ditaduras da época. É certo que, a partir de 1943, quando Mussolini foi expulso do Grande Conselho Fascista e formou a República de Salò, as diferenças esbateram-se. No entanto, respondo afirmativamente à pergunta deixada de Pedro Tadeu, confirmando que os dois regimes representam espécies distintas no interior de um mesmo género, sem que isso implique uma identidade total..A inclusão, ou não, do regime de Salazar em modelos genéricos de fascismo tem sido muito debatida, desde os anos 70 do século passado. No entanto, por "estorvar", mais do que ajudar à caracterização dos regimes, tem sido abandonada na historiografia, até porque o seu objecto de estudo é o passado singular. Ao contrário das ciências sociais, vocacionadas para a criação modelos genéricos ideal-típicos, que tendem, de forma redutora, a afastar-se da realidade concreta, a anterior procura académica de um "mínimo fascista" tem sido substituída pelos estudos empíricos e pelo conhecimento historiográfico sobre diversos aspectos do regime português..No debate sobre o caso português, não posso deixar de referir os estudos pioneiros, ainda em plena ditadura, de Hermínio Martins e Manuel de Lucena, que, à época, recorreram à teoria do totalitarismo de Arendt, para recusarem o carácter totalitário do salazarismo. No seu estudo sobre o corporativismo salazarista (1976), Manuel de Lucena definiu, porém, o Estado Novo como "fascismo sem movimento fascista"..Isto é, um regime que, na forma estatal, foi basicamente semelhante ao fascismo de Mussolini. Claramente a partir de 1935/36 e até ao final da II Guerra Mundial, o regime de Salazar pode ser comparado com as ditaduras de vários tipos das quais ele fez parte. Chamar-lhe fascista - ou "fascizante" - não é assim errado. Até a ideia de decadência e o mito de "regeneração da nação" (apontada por Roger Griffin, para definir o fascismo) existiram nos regimes de Mussolini, Hitler e de Salazar..Sem espaço para referir as semelhanças e as diferenças entre estes regimes, realço que o simples facto de os compararmos revela que todos fizeram parte dum conjunto heterogéneo que marcou uma época. É certo que o regime de Salazar - tal como o de Franco - só pode ser comparado realmente com o fascismo e o nacional-socialismo durante a vigência destes regimes. E as duas ditaduras ibéricas permaneceram após 1945..Depois da II Guerra Mundial, o termo "fascismo" transformou-se num conceito com má fama, que define múltiplos aspectos de um movimento ou regime, que extravasou as definições académicas e foi apropriado - e bem - pela opinião pública. Tal como Pedro Tadeu, deixo aqui umas perguntas: Pode-se hoje classificar de fascista a onda nacionalista de extrema-direita, racista, xenófoba e reaccionária e compará-la à vaga de ditaduras que assombrou a Europa do século passado? E utilizar o termo "fascismo", hoje? Não tenho nada contra, enquanto académica e cidadã preocupada, pois a palavra-conceito remete para o que conhecemos dessa onda e serve de alerta..Historiadora