O fantasma da liberdade

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Como no célebre filme de Buñuel, há títulos que são enigmas surrealistas de sentido difuso e de provocação ao espectador. Aqui, porém, o fantasma da liberdade refere-se a uma entidade mais prosaica e muito difundida no mundo ocidental dos nossos dias. É a imagem invertida de outro fantasma, sobretudo desde os atentados terroristas de Nova Iorque, Madrid e Londres: o fantasma da insegurança.

A insegurança não é, todavia, uma mera invenção de governos pérfidos para justificar restrições às liberdades individuais e colectivas. Perante as ameaças que se aproveitam, precisamente, do espaço das liberdades democráticas para instalar o terror, não é fácil encontrar soluções que evitem um condicionamento, pelo menos transitório, de algumas dessas liberdades.

Apesar dos transtornos e irritações que isso nos causa, aceitamos já naturalmente, por exemplo, o reforço das medidas de vigilância e controlo nos aeroportos e outros locais públicos onde antes circulávamos livremente. Quando defrontamos um inimigo sem rosto e que não recua perante nenhum limite para nos paralisar pelo medo, seria irrealista pensar que podemos enfrentá-lo sem prejuízo de alguma autonomia de movimentos a que nos habituáramos nas sociedades abertas e democráticas.

A questão não está, por conseguinte, em termos de aprender a viver hoje num quadro mais restritivo de certas liberdades, sempre que essas restrições resultem claramente em benefício de um bem maior que é a preservação da liberdade. Mas sucede que, especialmente a partir do Patriot Act, nos Estados Unidos, a ameaça real da insegurança foi-se transformando também num álibi para justificar as derivas securitárias que põem em causa direitos, liberdades e garantias constitucionais e concedem ao Estado um controlo orwelliano sobre a vida dos cidadãos. Deixa então de ser possível distinguir entre o que é motivado pela acção do inimigo externo e o que é produzido pela actuação de um Big Brother interno - e, já agora, global.

Sabemos aonde conduziu essa deriva e do doloroso despertar da consciência americana da domesticação pelo medo a que o país se submetera em nome da guerra contra o terrorismo. A dimensão catastrófica do desastre iraquiano tornou claro que a Administração Bush não só conduziu os Estados Unidos a um beco sem saída como foi responsável pelo agravamento da insegurança internacional que se propunha combater. Os atentados aos direitos humanos e às liberdades civis passaram a ser denunciados e escrutinados. E com a nova maioria democrata no Congresso existe hoje um contrapeso político aos abusos liberticidas do establishment republicano. Em todo o caso, é ainda cedo para avaliar os efeitos corrosivos que o aparato das medidas de controlo policial e político deixou na sociedade americana, favorecendo uma tentação isolacionista já fortemente assinalada em recentes sondagens.

O sentimento de vulnerabilidade externa e interna acaba sempre por ter um custo elevadíssimo para o valor da liberdade, que corre o risco de ficar reduzida a uma excrescência decorativa da boa-consciência democrática. Mas o fantasma da liberdade não paira apenas sobre a América - ameaça estender-se a todas as sociedades abertas contemporâneas onde a linguagem asséptica do pragmatismo e da eficácia tecnocrática tende a eclipsar a reserva dos valores liberais e democráticos.

Em Portugal, a anunciada criação do SISI (Sistema Integrado de Segurança Interna) levou alguns comentadores a lançar o alarme contra o monstro de um Estado policial que poderia germinar num ovo aparentemente inócuo. O exagero é óbvio e assume até expressões disparatadas que retiram credibilidade aos alarmistas. Não deixa, porém, de ser sintomático que um dos artífices do projecto - se não o seu principal inspirador e guardião secreto -, o ministro António Costa, pareça inteiramente insensível aos riscos da concentração política, para já sob a tutela do primeiro-ministro, de todo o sistema de informações e polícias.

Em artigo recente neste jornal, António Costa enumera com minúcia pedagógica os objectivos da coordenação de serviços até aqui dispersos e frequentemente caóticos, funcionando de costas voltadas uns para os outros, em competição estéril e contraproducente. Tudo isso é pertinente e indiscutível. Só que António Costa omite, pura e simplesmente, a necessidade de um controlo parlamentar permanente e institucionalizado sobre uma estrutura politicamente tão sensível e com interferências tão óbvias na área dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Como pode um antigo líder parlamentar - e um dos mais brilhantes, note-se - reduzir o Parlamento a uma tão irrelevante excrescência democrática, uma casa de rituais anódinos que, aparentemente, apenas servirá para celebrar o fantasma da liberdade?

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