O estranho caso do englobamento pífio

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Nos últimos dias andámos entretidos como uma discussão política vazia. No programa de governo, o PS propõe-se "caminhar no sentido do englobamento dos diversos tipos de rendimentos em sede de IRS, eliminando as diferenças entre taxas". A intenção é vaga, mas foi suficiente para levantar um coro de protestos entre quem mais beneficia de um sistema fiscal injusto. Entretanto, já se percebeu que pouco ou nada vai mudar, pelo menos para já. Ficamos sem perceber a razão - e a utilidade - de tanto alarido.

Posta em termos simples, a questão é esta: em Portugal há rendimentos que são tratados de forma muito desigual pelo fisco, sem que haja razões óbvias para isso. De acordo com as simulações ilustrativas publicadas pelo Expresso, uma pessoa que ganhe 60 mil euros de salários por ano paga 18 mil euros de IRS. Se ganhou o mesmo através de rendas de casas ou de dividendos de empresas de que é proprietário, paga apenas 16.800 euros. Já se os mesmos 60 mil euros resultarem da venda de uma casa, o fisco só cobra 8 mil euros - menos de metade do impostos pago por rendimentos do trabalho de igual montante.

Há dois problemas óbvios com esta situação. Primeiro, é pouco compatível com o princípio constitucional segundo o qual "o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo" (artigo 104º). Segundo, penaliza em especial os rendimentos do trabalho, transmitindo a mensagem de que quem vive do seu salário tem de contribuir mais para a sociedade - não apenas através do seu esforço, mas também pagando mais impostos - do que quem vive de rendas.

Parece, pois, evidente que há um problema no regime de IRS em vigor. Mas para percebermos se as regras devem ser alteradas devemos considerar outros dois tipos de questões: 1) Quais os argumentos que sustentam as desigualdades referidas? 2) Quais as consequências de uma eventual alteração à lei?

As questões de princípio foram suscitadas logo em 1989, quando o IRS foi criado. Apesar das objecções, o tratamento desigual dos diversos tipos de rendimentos foi considerado conforme à Constituição. O governo de então defendeu as diferenças pela necessidade de incentivar o desenvolvimento dos mercados de capitais, de estimular a poupança e de evitar a fuga de investidores para países com regimes fiscais mais favoráveis.

Hoje é questionável se os mercados de capitais precisam de ser estimulados, ou se devem sê-lo desta forma. O argumento da fuga de capitais ficou em grande parte esvaziado com o aumento das trocas de informações entre autoridades fiscais nacionais. Quanto a estimular a poupança, a necessidade permanece. Resta saber se os estímulos previstos são os mais desejáveis e eficazes. Ou seja, muitos dos pressupostos que estiveram na base da criação do IRS são hoje dúbios.

A outra questão prende-se com os impactos de eventuais alterações à lei. Aqui as coisas complicam-se. Tudo depende das mudanças concretas que se querem introduzir: vão ser englobados todos os tipos de rendimento? Essa alteração vai ser acompanhada de uma revisão geral dos benefícios fiscais, dos escalões do IRS e/ou das taxas de imposto? Quem são os segmentos da população mais afectados?

Seria também importante saber o que se aprendeu com as alterações ao IRS levadas a cabo no passado recente. Por exemplo, em 2007 as mais-valias mobiliárias passaram a ser englobadas no IRS em metade do seu valor (até aí estavam isentas). Teve algum impacto relevante nos mercados de capitais? No sentido contrário, em 2013 os rendimentos obtidos através de rendas deixaram de ser obrigatoriamente englobadas (o que permitiu aos proprietários mais ricos pagarem menos impostos). Qual foi o resultado destas alterações: houve mais ou menos investimento em casas para alugar? As rendas aumentaram ou diminuíram? Como evoluiu a receita fiscal?

A discussão em curso passa ao lado destas questões. Sem surpresas, aqueles que teriam mais a perder com o englobamento apressaram-se a contestar as intenções do governo, apesar de genéricas. A Associação Portuguesa de Proprietários (APPROP) não fez a coisa por menos: afirmou que a ideia representa uma "declaração de óbito" do mercado de arrendamento e "um ataque à propriedade privada", "para encher os cofres à custa" dos proprietários. Não se sabe em que estudos se baseiam estas afirmações. Também custa a entender por que razão a APPROP considera que quem vive do seu trabalho deve pagar mais impostos do que quem vive de rendas.

Se a reacção dos grupos de interesse é esperada, percebe-se menos a intenção do governo ao alimentar a discussão nestes termos. Apesar das questões de princípio, não parece haver intenção de mexer no regime fiscal de grande parte dos rendimentos de capital. Quanto às rendas, o Primeiro-Ministro deixou claro que não pretende alterar os benefícios recentemente aprovados para o programa de renda acessível e para contratos de arrendamento superior a dois anos - que são a esmagadora maioria dos contratos.

Ou seja, para lá das declarações doutrinárias, não se esperam grandes alterações. A ser assim, para que serve este ruído e a incerteza que gera? Será apenas Costa a fingir que é de esquerda (citando Pedro Santo Guerreiro)?

Economista e Professor no ISCTE

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