O drama de Paula, a quem o vírus deixou com um "minilar" em casa

Com quatro idosos com mais de 80 anos na mesma casa, Paula Oliveira já perdeu uma tia e tem outra e o pai hospitalizados. Pelo meio, também ela ficou infetada. Um relato de quem viu a covid-19 virar-lhe a vida do avesso e se sente impotente perante a teia de obstáculos que encontrou pelo caminho.
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Por trás da frieza dos números que dão dimensão à pandemia, escondem-se sempre histórias com rosto e nome definido. Histórias de gente comum que viu, num instante, a vida virada do avesso; relatos de pessoas impotentes perante um vírus capaz de destruir em três tempos as fundações familiares existentes; testemunhos de revolta face à ausência de respostas. Dramas como o que atingiu Paula Oliveira, a quem a covid-19 entrou pela porta da família e deixou, de um momento para o outro, com um "minilar" em mãos para gerir.

A história de Paula, que viu o SARS-CoV-2 afetar tragicamente a casa onde moravam os pais e duas tias, todos com idades superiores a 80 anos, mostra como, além da doença, há toda uma complexa teia de obstáculos, no terreno, para ultrapassar por quem cai nas malhas da covid - e que, tantas vezes, deixam a nu as lacunas de protocolos sanitários desencontrados das necessidades reais do dia-a-dia.

Paula, de 56 anos, vive em Rio Tinto (Gondomar), com o marido a e filha. Entre a sua casa e aquela onde os pais e as tias quase sempre moraram juntos, em São Roque (Porto), do outro lado da estrada da Circunvalação, há pouco mais de cinco minutos de distância. No final de setembro, sem que Paula saiba ainda como, uma febre do pai, de 82 anos, lançou o alerta. O vírus instalara-se em casa dos familiares e ela, a tentar recuperar de uma depressão, viu-se a braços com uma "situação de desespero" que lhe haveria de tomar conta dos dias até agora.

De lá para cá, em menos de um mês, Paula Oliveira - que pediu para não ser fotografada - viu o pai e as duas tias serem internados, uma delas acabando mesmo por morrer. Também ela própria se viu infetada após dias a tratar deles. Só a mãe continua a resistir ao vírus, negativa até hoje. Pelo meio, muita revolta e impotência perante as respostas que foram chegando das autoridades de saúde. "Eu fiquei com um minilar nas mãos, completamente sozinha", desabafa ao telefone, quando contactada pelo DN.

A angústia e o luto ainda estão bem presentes - a tia mais velha, de 93 anos, acabou por morrer no dia 12 de outubro - e a voz sai muitas vezes abafada pela emoção. Paula puxa atrás a fita do tempo e ainda tem dificuldade em aceitar os obstáculos que teve de enfrentar desde o dia em que a febre do pai fez soar o alarme. "Uma coisa é o que eles dizem na televisão, outra coisa diferente é a realidade", resume.

Recuemos então até final de setembro. Dia 23. "O meu pai foi o primeiro a ter sintomas. Teve febre, sentia frio. Um ou dois dias depois, já preocupada que pudesse ser covid, decidi chamar a casa um médico que os acompanha há muito, de uma associação de que são sócios", conta Paula. "Entretanto, nesse mesmo dia (25), uma das minhas tias (de 88 anos) vomitou e também fez febre. O médico auscultou as quatro pessoas da casa, precisamente por viverem todas juntas e serem grupo de risco, e aconselhou-me a ligar para a Saúde 24 na manhã seguinte para pedir testes aos quatro", recorda Paula. As dificuldades começaram aí.

"Para meu espanto, só mandaram fazer testes ao meu pai e à minha tia que tinha tido febre. Apesar de eu ter realçado que moravam outras duas pessoas de idade na mesma casa, sem condições de isolamento, a partilhar a mesma casa de banho, e que a minha outra tia (93 anos) estava com demência e tinha problemas respiratórios crónicos...". Paula lembrou-se de imediato do "drama dos lares" - onde, segundo dados recentemente divulgados pela Direção-Geral de Saúde, ocorreram cerca de 40% das mortes por covid em Portugal (nesta quarta-feira a DGS referiu existirem surtos em 129 lares) - e temeu ficar com uma tragédia semelhante dentro de portas. O tempo viria a confirmar os receios.

Dos testes feitos ao pai e à tia que tinha manifestado sintomas, resultaram um positivo (pai) e um negativo (tia). Apesar dos avisos de Paula sobre o facto de não conseguir garantir isolamento entre os quatro habitantes da casa, a resposta do outro lado da linha (SNS 24), refere, remeteu para o protocolo. E, neste caso, "deveria mantê-los assim em casa, a vigiar os sintomas", ainda ligeiros, e sem indicação de testes para a mãe e a outra tia.

Entretanto, poucos dias depois, o pai (positivo) teve dois picos de febre alta ("um de 39 e outro de mais de 40 graus") e o médico de família sugeriu a hospitalização. Aí, conta Paula, surgiu novo obstáculo na linha SNS 24. "Disseram que só podiam acionar transporte se o meu pai tivesse dificuldades respiratórias".

Paula, a recuperar de uma "depressão forte", mudara-se já para casa dos familiares para cuidar deles, deixando o marido e a filha na outra casa, "para evitar qualquer contágio para eles". Teve de deixar de tomar a medicação contra a depressão, "para não correr o risco de não conseguir acorrer às necessidades [de pais e tios]". E ficou "de rastos", diz, física e mentalmente. Já "em desespero", confessa: "Vi-me obrigada a mentir. Liguei para o INEM a dizer que o meu pai tinha dificuldades respiratórias e problemas do coração." Só assim conseguiu transporte hospitalar. "E a verdade é que o meu pai chegou ao hospital e ficou logo com oxigénio, porque estava a precisar", conta.

O pai ultrapassou a covid no hospital, fez dois testes negativos, mas entretanto teve um enfarte e uma infeção intestinal - e continua, por isso, internado. E os problemas acumularam-se. A tia mais velha, com demência e problemas respiratórios crónicos, a quem tinha sido negada inicialmente a realização de um teste, acabou por também testar positivo e ser internada, depois de Paula ter conseguido junto da médica de família que ela fosse testada. E a outra tia, que tinha dado negativo num primeiro teste, acabou por desenvolver sintomas (febre).

"Liguei novamente para a médica de família e, mais uma vez, tive de mentir, dizendo que além de febre a minha tia também tinha tosse e que a minha mãe também tinha começado a ter tosse. Só assim consegui que fizessem os testes que faltavam", lembra Paula, "revoltada por ter de mentir para conseguir que o sistema funcionasse". A tia mais nova viu também então o teste dar positivo, enquanto a mãe teve resultado inconclusivo. No dia 8 de outubro, a tia foi também hospitalizada, juntando-se à outra tia e ao pai de Paula. Em casa, ficou então apenas a mãe.

Preocupada com a possibilidade de ela própria poder estar infetada, depois do contacto com os familiares, e poder transmitir para a mãe ou para o marido e a filha, Paula resolveu recorrer ao privado para conseguir ser também testada, depois da nega do SNS. "Por eles [SNS], o protocolo era apenas cumprir quarentena aqui em casa dos meus pais. Uma quarentena que não tinha data para acabar, era mediante o que acontecesse aqui em casa e o evoluir das infeções de uns para outros [entre os pais e as tias]. Só faria teste no fim da quarentena, caso fosse necessário".

Paula não esperou. "Tinha de me sentir bem, sem medo de poder ser uma fonte de perigo". O primeiro teste deu negativo. O segundo, no dia 11 de outubro, "deu positivo". Também ela, apesar de assintomática, estava infetada. "Nesse dia caiu-me tudo. Fugi de casa da minha mãe, com medo de a infetar. Mas também não podia ir para minha casa, para não infetar o meu marido e a minha filha. Fiquei horas no carro, na garagem, a chorar... Foi um drama para mim, não sabia o que fazer. Acabei por ligar ao meu marido e fui lá para casa, fiquei isolada no escritório durante oito dias até dar negativo, mas nem pude ir ao funeral da minha tia".

No dia anterior a saber que estava infetada, Paula recebera um telefonema do hospital onde os familiares estavam internados a informar que a tia mais velha, "a quem dois dias antes queriam dar alta porque já não precisava de oxigénio, tinha piorado bastante". "Disseram-me que podia ir visitá-la, excecionalmente...". Os sentimentos dividem-se: "Estou eternamente agradecida ao hospital por me ter deixado despedir dela, estou mesmo. Mas, por outro lado, também penso que este desfecho se calhar podia ter sido evitado se lhe tivessem feito o teste mais cedo, logo quando o meu pai ficou com febre. Se calhar ela já estava assintomática nessa altura. Não sei..."

As dúvidas são maiores do que as certezas ainda hoje. Paula não sabe como o vírus entrou em casa dos familiares. Se terá sido através do próprio pai, que "tinha ainda uma vida normalmente ativa", ou da assistência que a tia mais velha recebia - "a associação em causa diz que não teve nenhum funcionário infetado", ou de qualquer outra forma. Assim como não sabe também como vai ser daqui para a frente.

"Queriam dar alta à minha outra tia, que ainda está internada, apesar de ela não ter feito ainda nenhum teste negativo. Mas como os sintomas estão ligeiros, e como agora o novo protocolo diz que ao fim de dez dias quem tem sintomas ligeiros pode ter alta, queriam mandá-la para casa. Expliquei que não tenho condições para a isolar da minha mãe e a médica disse que em vez de eu desinfetar o WC uma vez por dia que desinfetasse mais vezes - como se eu já não desinfetasse várias vezes ao dia. Entretanto, transferiram a minha tia para o hospital militar, até completar 20 dias. Nessa altura, se mantiver sintomas ligeiros, dão-lhe alta."

O cenário deixa Paula com medo de recomeçar um filme de terror que, assegura, não consegue "reviver". "Eu quero muito que a minha tia venha para casa, é o que mais quero. Mas só quando estiver negativa, para não correr o risco de passar à minha mãe. É o que eu estou sempre a explicar-lhes. Já perdi uma tia e não consigo passar por uma perda de novo."

Por isso, Paula diz "não conseguir perceber" o novo protocolo que permite alta a um doente covid mesmo sem um teste negativo. "Só quero que a testem para dar negativo. Aliás, nem me importo de ser eu a pagar. Mas não quero passar pelo mesmo. As coisas não tinham de ser assim. Isso é que me magoa. Eu alertei. Era um minilar que eu tinha aqui. E se nos lares ainda há condições para isolar os doentes, eu nem isso. Senti-me completamente abandonada".

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