O dia em que Rui estragou a buzina nova de tanto apitar

Rui Coimbra é taxista há 12 anos e participou ontem na marcha lenta entre o Parque das Nações e a Assembleia da República. Entre a tranquilidade e o desejo de maior intransigência, acabou por chegar satisfeito ao Parlamento
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Quando, pelas 09.30 de ontem, Rui Coimbra partiu no seu táxi do Parque das Nações, em Lisboa, acreditava que, mesmo em marcha lenta, não iria demorar mais de duas horas a chegar à Assembleia da República, a pouco mais de dez quilómetros de distância. Meia hora depois, mudou de ideias. Afinal, em 30 minutos conseguira percorrer apenas dois quilómetros até à Praça José Queirós, onde a tranquilidade do jazz, da soul e dos blues que tocavam no rádio sintonizado na Smooth FM contrastavam com o desespero de quem encontrava a rotunda cortada e não sabia ao certo por onde ir.

"Agora vão ficar a saber os atalhos todos. Vamos deixar de poder ir por eles para fugir ao trânsito", brincava, pouco minutos depois, já na Avenida da Berlim. Chegara o momento de mudar para a TSF e ouvir o que se passava na coluna de táxis que se perdia de vista. Os argumentos dos colegas deixaram-no satisfeito, não fossem semelhantes aos que, desde o início do percurso que acabaria por se prolongar por mais de quatro horas, partilhava com o DN.

"Esta malta [da Uber] aparece, aluga um carro e mete-se ao trabalho, enquanto a nós nos exigem tudo e mais alguma coisa", desabafou, sem deixar de recordar o modo como, há 12 anos, decidiu trocar o volante de carrinhas de transporte de valores por táxis que até rendiam bastante bem. "Era para ser só um ou dois anos e ainda aqui estou", constatou, enquanto, lá fora, alguns colegas aproveitavam as paragens que se iam sucedendo ora para fumar um cigarro ora para esticar as pernas. Passara já quase uma hora e o aeroporto ainda nem se avistava.

E se fosse assim num serviço do dia-a-dia? "Há clientes que saem do carro e vão a pé quando há trânsito e veem que falta pouco. É normal, não estão a pagar para estar parados", sublinhou. Ontem, o dia era diferente e, no terminal da Portela, eram muitos os turistas que desesperavam ao ver dezenas de táxis que se não podiam apanhar. Outros tiravam fotografias. Rui Coimbra aproveitava, mais de uma hora depois de ter saído do Parque das Nações, para dar uso à buzina quase nova de tão pouco que é habitualmente usada.

Estacionados na Rua do Ouro

"Avança, avança!", gritava, poucos minutos depois, alguém da organização, perante o buraco que, entretanto, se abrira na coluna que terá juntado mais de mil táxis. Rui Coimbra acelerou... para logo parar na Avenida das Comunidades Portuguesas. "Agora, vamos ficar aqui", anunciou, ainda sem saber o motivo para a interrupção que levara os colegas a sair dos táxis e a conviver em plena estrada.
Voltaria 15 minutos depois com a resposta: o trânsito fora bloqueado na Avenida Gago Coutinho pelos próprios taxistas, mas, agora que havia a garantia de que seriam recebidos na Câmara Municipal de Lisboa e na Assembleia da República, a marcha podia continuar. Mas com cuidado, que, por essa altura, eram já muitos os que tinham optado, dado o trânsito congestionado, por arrastar as malas até ao aeroporto numa via em que, habitualmente, os carros circulam com velocidade.

"Por mim, os dirigentes iam lá e nós só saíamos daqui quando a reunião terminasse e se a solução fosse boa", desabafou. A escolha foi outra e, a partir daqui, era já evidente que o espírito mudara e que as buzinas ensurdecedoras eram agora mais de júbilo do que de raiva. "A minha já está a morrer. Vou ter mesmo de comprar uma nova. Mas vale a pena", considerou.

Nas ruas de Lisboa, viam-se polícias de bicicleta, de moto ou a pé que, à medida que os táxis iam chegando, interrompiam vias adjacentes, apesar dos protestos de quem nela circulava. "Vai ficar no carro? Vamos a pé até à câmara municipal", perguntou, ao mesmo tempo que desligava o seu táxi em plena Rua do Ouro, imitando os colegas. Não estava a brincar e só depois de terminada a reunião de alguns dirigentes com o presidente da autarquia e de o hino nacional ter sido entoado a marcha seguiu, pelas 12.30, até à Assembleia da República. "Foi melhor do que estava à espera", garantiu, sem deixar de frisar que os próprios taxistas têm de melhorar o seu serviço.

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