O dia em que o mundo ficou aliviado com a vitória de Putin

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A história da humanidade está repleta de aliados que se fizeram inimigos figadais. Basta recuar ao século XX, para encontrar um bom exemplo de como alimentar escorpiões aumenta a probabilidade de acabar vítima do seu veneno. O ponto de partida foi igualmente uma invasão, do Afeganistão pela União Soviética, que levou os norte-americanos a treinarem e financiarem os mujaedines, a quem chamaram "combatentes da liberdade", bem sabendo que os novos amigos eram guerrilheiros fundamentalistas islâmicos. O resto da história é conhecida e teve o ponto alto no dia 11 de setembro de 2001.

O grupo Wagner, aparece pela primeira vez em 2014, na altura da anexação da Crimeia. Dono de um currículo de violência e desrespeito pelos mais básicos Direitos do Homem, tem um historial de relações de proximidade com o Kremlin que o levaram a beneficiar de protecção política interna a troco de serviços em países terceiros a favor da política externa de Moscovo. Com ligações aos serviços de inteligência militar, constituído maioritariamente por ex-condenados, o grupo é acusado de ter cometido crimes de guerra (tortura e violações) em vários países onde ajuda a manter regimes pouco ou nada democráticos.

O histórico de Yevgeny Prigozhin, também ele um ex-condenado no tempo da União Soviética, fez-nos olhar, este fim-de-semana, para Putin e os seus aliados no Kremlin como moderados. Mesmo sabendo que esta classificação só é possível por comparação com os antigos aliados, agora retratados como "criminosos loucos e seus seguidores". Dmitri Medvedev, o ex-presidente russo que passou o último ano a agitar o papão do nuclear como resposta a uma eventual derrota de Moscovo na Ucrânia, apressou-se a lembrar ao mundo que, "na história da raça humana, nunca houve uma situação em que o maior arsenal de armas nucleares tenha sido controlado por bandidos". A verdade é que o mundo vive com esse receio, desde a queda do império soviético.

Desta rebelião resulta uma imagem de fraqueza por parte de Vladimir Putin, por ter permitido que o movimento avançasse durante 24 horas, mas a aparente fragilidade do Kremlin contrasta com a facilidade com que derrotou a tentativa de golpe sem precisar de usar a força. Prigozhin, convencido pelo fantoche do Kremlin, Aleksander Lukashenko, a ir viver para a Bielorrússia, sem a proteção do seu grupo militar privado, é um condenado à morte. Ele sabe disso e aceitou a derrota.

A rebelião serviu igualmente para dar moral aos ucranianos, militares e civis, mas esteve muito longe de corresponder ao sonho de ver a guerra chegar ao fim. Terá permitido os avanços possíveis em 24 horas de desorientação do inimigo e pouco mais. Feitas as contas, Putin ficou mais frágil aos olhos do mundo e, talvez, aos olhos dos seus compatriotas e isso pode ser uma razão para o tornar ainda mais perigoso. Mas Medvedev tem razão, se um exército privado de ex-condenados tomasse o poder de uma potência nuclear, e no Kremlin passasse a estar um doido como Prigozhin, "o mundo [poderia ser] levado à beira da aniquilação". Nestas circunstâncias, não dá para dizer que não se quer nem um nem outro, porque só um dos dois podia ganhar. A vitória de Putin é um alivio.

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