O dia da eleição
A vitória dos democratas nas eleições presidenciais norte-americanas foi precedida de uma campanha eleitoral extremamente tensa, recheada de insultos e de violenta acrimónia, que refletiu bem a grande divisão interna e as contradições enfrentadas pelos Estados Unidos, exacerbadas pelo nunca resolvido problema racial.
Nada pôde travar a queda irreversível do candidato republicano, que já era crismado popularmente como "the continental liar". Duas coisas favoreceram na verdade o candidato democrata: a sua preocupação com verdade, a sua honestidade pessoal na vida pública e a sua veemente denúncia de um governo republicano corrupto, extravagante e subserviente aos ricos.
E foi assim que os democratas voltaram em 1884 à presidência da União e foi assim que Grover Cleveland se tornou nesse ano o 22.º presidente dos Estados Unidos.
A razão para recordarmos hoje uma eleição tão distante num mundo tão diferente e numa sociedade tão mudada está no facto de este sufrágio ter sido o tema de um poema do grande Walt Whitman, "Election Day, November 1884", o único poema que conheço a saudar e prestar homenagem à majestosa beleza das eleições democráticas por sufrágio universal, essa conquista popular de que às vezes não sabemos medir suficientemente a importância e a necessidade.
Whitman proclama que a mais forte e poderosa imagem do mundo novo, que é para o poeta a América e a democracia, não está nas "ilimitadas pradarias", nos "poderosos lagos" ou nas volumosas correntes dos rios da sua terra, mas antes na "fervilhante humanidade" ("this seething hemispher's humanity") e na "tranquila e pequena voz a vibrar" ("the still small voice vibrating") que ele vê surgirem no "American"s choosing day", o dia da eleição, esse enfrentamento entre todas as terras e gentes da União, essa chuva de votos ("final ballot-shower") como uma queda de neve ("the countless snow-flakes falling"), em que as escolhas se fazem por um conflito sem armas ("swordless conflict"), através da escolha de todos ("peaceful choice of all"), contrariamente ao que eram as guerras de Roma ou de Napoleão.
Por certo, não encontramos aqui uma humanidade reconciliada consigo própria, milagrosamente a vibrar em harmonia: o bem e o mal ("or good or ill humanity") vêm acima nesta luta e, dialeticamente, cabe-nos até aceitar o que nos repugna ("welcoming the darker odds, the dross"), pois toda essa mesma escória irá servir para fermentar e purificar o vinho do resultado ("foams and ferments the wine? It serves to purify"). Como o poeta diz num verso que sintetiza bem o nosso estado de espírito diante de algumas eleições cruciais: enquanto o nosso coração bate ofegante, a vida resplandece ("while the heart pants, life glows").
Harold Bloom disse algures que Whitman era o pai e a mãe da imaginação americana, o profeta e o maior celebrante do que poderíamos chamar a religião americana. Eu não acredito em religiões americanas nem em credos nacionais, mas não me custa aceitar que existe um imaginário americano e que esse imaginário permeou o mundo moderno e tornou aquilo a que poderíamos chamar, na esteira da Weltliteratur de Goethe, o imaginário do mundo, em algo que os sonhos e as criações dos Estados Unidos, para o melhor e para o pior, atravessaram e muitas vezes modelaram.
O Mr. Smith que vai para Washington, no filme de Frank Capra, denunciar a corrupção e a degradação da democracia junta-se ao falso cínico Rick, que parte de Casablanca para lutar contra o fascismo, a fazerem coro com a enorme sede de justiça de todos os discursos emancipatórios da história, de Voltaire a Karl Marx, de Lincoln a Mandela. A minha infância foi povoada pelos fantasmas, talvez capitalistas, do Pato Donald, mas também pelas vitórias da pequena Dorothy sobre as bruxas do mal, no Feiticeiro do Oz, esplendorosas como as das forças americanas a derrotar os nazis, que eu lia nas revistas antigas do meu avô. São os povos que podem derrotar os "darker odds, the dross" que a história engendra. Foi o povo americano que derrotou Trump.
Dedico este artigo à minha neta luso-americana.
Escritor e diplomata