Discutir o serviço público de televisão é mais do que abordar a programação de uma estação de televisão. E avaliar o contributo que este deve dar no domínio da informação à sociedade está muito para além das suas competências técnicas..E se isso é verdade para vários domínios da sociedade, também o é para o desporto..Para alguns trata-se de um assunto que é uma espécie de reserva corporativa, excluindo ou desvalorizando aqueles que, fora do sistema que ao longo de décadas dominou os vários poderes nos quais opera o serviço público de televisão, ousam pronunciar-se. Mas é óbvio que o assunto interessa a todos os portugueses que se preocupam com a comunicação social pública e, no nosso caso particular, com o desporto..Desde logo, começando por lembrar que gerações de portugueses acompanharam as principais vitórias de atletas e equipas portuguesas em competições internacionais e Jogos Olímpicos através do serviço público de rádio e televisão. Durante décadas este serviço público assumiu um papel de incontornável importância para o desenvolvimento desportivo nacional, pois a reconhecida qualidade técnica dos seus profissionais contribuiu para a formação desportiva das audiências, em território nacional e na diáspora..Estas conquistas fazem parte do imaginário de milhões de portugueses. Representam um inestimável património coletivo do país e são momentos incontornáveis na afirmação da nossa identidade. Foram poderosos fatores agregadores das comunidades de língua portuguesa que, espalhadas pelo mundo, acompanharam em direto, a cada momento, o percurso até à glória dos seus desportistas culminada com a bandeira nacional içada no mais elevado mastro e os acordes do hino nacional escutados por milhões..Nesta medida, por mais diversas que sejam as perspetivas em torno do conceito de interesse público, onde se ancora o serviço público de rádio e televisão, este acervo cultural assume um papel incontornável e inalienável, forjado ao longo de décadas na construção social da identidade desportiva nacional..Trata-se, também por isso, de um património que se projeta muito para além do direito consagrado à informação pública, pois este direito afigura-se muito mais contingente do que os traços distintivos da história e da memória. E de um património que não pode ser apenas avaliado à luz de audiometrias de audiência ou de lógicas comerciais..O panorama do mercado audiovisual e a sua relação com o fenómeno desportivo na emergência da sociedade das novas tecnologias de informação e comunicação tem sofrido profundas e rápidas transições que reconfiguram e colocam novos desafios à missão do serviço público de rádio e televisão em relação ao desporto..Na recente discussão pública sobre o serviço público de televisão o Comité Olímpico de Portugal teve oportunidade de reiterar o seu entendimento sobre o que está em causa: a capacidade de o serviço público difundir e promover a dimensão social e cultural na diversidade do desporto, como retorno dos benefícios económicos e sociais que este proporciona à comunidade..Nesse sentido, a estratégia de conteúdos desportivos numa ótica de serviço público não pode ficar refém de critérios comerciais para assegurar a sua sustentabilidade, nem o espaço público televisivo pode ser ocupado apenas por quem detém condições económicas e financeiras para garantir a produção dos seus eventos e publicitar as suas iniciativas, normalmente com custos associados consideravelmente mais elevados do que o mercado concorrencial..Como não é aceitável uma tendência monotemática nos espaços de debate replicando a lógica da concorrência do setor privado num modelo em tudo semelhante e circunscrito ao espetáculo desportivo do futebol profissional, limitando o debate sobre os problemas do desporto a este particular..Por outro lado, o mercado digital e a diversificação de plataformas de distribuição de conteúdos desportivos têm assumido uma dimensão cada vez mais relevante nos consumos desportivos da população e na comercialização dos direitos de transmissão, os quais representam um pilar fundamental na sustentabilidade do tecido desportivo europeu..É já hoje uma tendência precipitada pela revolução digital os organizadores das competições desportivas que não conseguem espaço no mercado televisivo tradicional assumirem a condição de produtores de transmissões dos seus próprios eventos via plataformas de streaming ou nas redes sociais, substituindo-se aos grandes operadores e criando audiências específicas..Este fenómeno abre uma discussão em torno do papel - e do futuro - que os canais tradicionais devem assumir perante uma audiência que despertou para novos produtos e formas de consumo. O que representa igualmente uma oportunidade para criar um serviço público mais consentâneo com a capacidade de responder às exigências da audiência nacional..É nosso entendimento que sem uma opção mais clara e incisiva por parte do serviço público de televisão, o desporto continuará refém da pouca atenção que lhe é concedida, das dificuldades que a esmagadora maioria das modalidades têm em conseguir um espaço, mesmo custeando as respetivas transmissões, e de uma situação de profundo desequilíbrio na grelha de programação em relação a outros setores, desde logo pelas prioridades assumidas no contrato de concessão agora em discussão..Este é, portanto, o momento decisivo para projetar o futuro ajustando as orientações do serviço público à transição célere e profunda que o panorama audiovisual desportivo tem vivido e aos desafios iminentes que se colocam ao desenvolvimento do desporto português..Presidente do Comité Olímpico de Portugal