O costureiro com a cabeça no futuro

Estudou com os melhores, de Schiaparelli a Dior, mas o costureiro que morreu esta 3.ª feira, em Paris, aos 98 anos, não hesitou em quebrar as convenções do setor. Com um pé na Alta Costura e outro no pronto-a-vestir de qualidade, Pierre Cardin, o único "civil" a vestir um fato de astronauta, deixa aos vindouros um legado de milhões.
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O logotipo da sua marca é, no mundo da moda de autor, um dos mais facilmente identificáveis pelo público: o C a nascer do P tem uma eficácia gráfica que nos remete imediatamente para os anos de ouro da Pop Art. Pierre Cardin, nascido a 2 de julho de 1922, recebera, no batismo, o nome de Pietro Costante Cardini, já que nasceu ainda em Itália (em Sant'Andrea di Barbarana, Veneza), filho de camponeses. Mas ainda criança rumará a França, a acompanhar os pais e os sete irmãos mais velhos, em busca de vida mais próspera, como, aliás, aconteceria, pela mesma época, a Yves Montand e Serge Reggiani.

No final da 2ª Guerra Mundial, Pietro, tornado Pierre, tinha 23 anos e Paris há muito que deixara de ser a festa de que falara Hemingway. A guerra e a ocupação alemã tinham deixado cicatrizes profundas. Com a Economia completamente desestruturada, os grandes nomes da Haute Couture das décadas anteriores eram pouco mais do que uma recordação. Se Paris queria voltar a ser a "capital da moda", havia que desenhar numa página em branco. E foi assim que surgiram Christian Dior, André Courrèges, Paco Rabanne e - voilà - Pierre Cardin, que criou a sua própria marca em 1950, quando os existencialistas já revolucionavam a cena cultural parisiense.

Cardin aprendera o ofício na rigorosa "oficina" da alfaiataria, onde começou a trabalhar aos 14 anos. Dando boa conta de si, foi contratado, em 1944, pela Maison Paquin, onde assinaria o guarda-roupa e as máscaras do filme de Jean Cocteau, A Bela e o Monstro (1946). Trabalharia ainda nos últimos anos da Maison Schiaparelli e tornar-se-ia um dos principais obreiros da revolução do "New Look", protagonizada por Christian Dior, de que Cardin seria um dos assistentes. Anos mais tarde, reivindicaria a autoria de uma das peças chave do look Dior: o tailleur amplo nos ombros e estreito na cintura, conhecido por "Bar", mas, para alguns historiadores de moda, essa não passaria de uma "fanfarronada" de Cardin...

À frente da sua própria griffe, teve liberdade para soltar amarras. Nos anos seguintes desenhou o guarda-roupa de uma época que já sonhava com aventuras espaciais e com uma maior liberdade de movimentos para ambos os sexos. Com André Courrèges (1923-2016) e com o espanhol (mas instalado em Paris) Paco Rabanne (nascido em 1934) criará silhuetas livres, muito gráficas, com amplo recurso a materiais que teriam horrorizado Chanel e Schiaparelli como o vinil, o metal ou as peles falsas. "Tive sempre a cabeça no futuro - diria Cardin muitos anos mais tarde - preferi sempre criar para um público jovem."

As suas fontes de inspiração eram os movimentos culturais do mítico bairro parisiense de Saint-Germain des Près, mas também as aventuras espaciais protagonizadas por soviéticos e norte-americanos. Em 1964, quando essa corrida entre rivais despertava cada vez mais entusiasmo, Cardin assinou a coleção "Cosmocorps", em que, pela primeira vez, se via na Haute Couture elementos que mais pareciam do pronto-a-vestir como "macacões", bodies, mini-saias com peitilho e casacos de fecho assimétrico quer para homem, quer para mulher. Tudo isto em cores fortes, que o brilho dos materiais empregues tornava ainda mais vibrantes. Esta visão da moda foi recordada em 2019 pelo Museu de Brooklyn, a propósito do cinquentenário da chegada do Homem à Lua. Matthew Yokobosky, curador da exposição "Future Fashion" (que ali esteve patente no verão do ano passado) salientava que a abordagem de Cardin era totalmente diferente da dos outros criadores de moda da época. Enquanto estes procuravam inspiração em paisagens exóticas, ele procurava-a na "ciência e na corrida ao espaço, em particular. Mas não só. O mundo dos computadores também influenciava muito a sua ideia de design." Em Julho de 1969, quando a Apollo XI alunou com sucesso, o criador de moda não conteve o seu entusiasmo: Foi à NASA, em visita de estudo, e conseguiu vestir o fato de astronauta. Até hoje foi o único "civil" a fazê-lo.

Sempre com um pé no pronto-a-vestir de qualidade (o que não lhe foi perdoado por muitos dos seus pares), Cardin era tão exímio na arte da negociação como na da costura. Nas últimas décadas o licenciamento da sua marca em vários países (e em produtos tão diferentes como a perfumaria, fardas para companhias aéreas como a Air France ou a Olympic Airlines ou acessórios para automóveis) tornou-o multimilionário, mas, segundo alguns críticos, demasiado acomodado na sua área de origem, a Moda. Em respostas a tais acusações, Cardin costumava dizer: "A necessidade de se reinventar constantemente é um perigo para a Moda. O meu estilo é reconhecível? Ainda bem. Faz parte da assinatura."

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