"O melhor de ser rapaz é o futebol." É a primeira resposta que ocorre a Bernardo, 9 anos, cabelo alourado e rosto sorridente. Mas emenda logo de seguida: "Não é bem o futebol porque também há futebol feminino." Afinal, pensando bem, o melhor de ser rapaz é "não termos bebés na barriga e a saírem pelo pipi. E não termos de fazer chichi como uma bisnaga de água. Porque as raparigas fazem chichi como se tivessem uma bisnaga". Faz uma careta. "Fazer chichi em pé é muito melhor.".Concluindo: para o Bernardo o melhor de ser rapaz é não ser rapariga. E o melhor de ser rapariga será o quê? Reflete. "É ser vaidosa. E ser bonita." Um amigo de Bernardo, por sinal também chamado Bernardo, que veio ter com ele ao Jardim da Estrela nesta tarde quente de Primavera, ajuda: "É namorar e não chatear." Porque, explicam os dois, as raparigas da escola "às vezes correm atrás de nós e prendem-nos". E para quê? Risota: "Para nos beijarem." E eles, os rapazes, nunca perseguem as raparigas? "Sei lá. Sim. Gozamos que elas são feias."."Não há nada bom em ser rapariga".E como seria ter nascido rapariga, já imaginaram? Fazem cara de quem ficou perplexo: "Sei lá." Mas, se calhar por pensar assim pela primeira vez, o Bernardo louro (o outro é moreno) quer corrigir o que disse antes: "Não há nada de bom em ser rapariga." Até porque "o comportamento típico de rapariga é ser queixinhas, medricas. Ter medo de tudo". Esta visão tão negativa das raparigas convive, no entanto, com a ideia de que elas e eles "devem ter os mesmos direitos" e "não é justo os homens ganharem mais do que as mulheres pelo mesmo trabalho". E se não ganham o mesmo, decide o Bernardo louro, "a culpa é de quem manda, dos diretores, que são parvos". Nunca ouviram falar de um tempo em que as mulheres estavam impedidas de fazer os mesmos trabalhos que os homens, mas "só se foi", acham, "na ditadura." O Bernardo louro conclui: "Foi uma fase chata mas depois veio o 25 de Abril e foi bom." Questionados sobre o porquê de jamais terem visto em Portugal uma presidente da república ou uma primeira-ministra, refletem: "Não querem ser, com certeza. Deve ser por isso que não aparecem; já não é a ditadura.".Mas a igualdade afinal não é para tudo, e a injustiça de os homens ganharem mais pode ser naturalizada: "Quem toma mais conta dos filhos são as mulheres porque são os homens que trabalham mais e ganham mais dinheiro." Quanto a haver ainda países onde as mulheres são impedidas de fazer uma série de coisas, como por exemplo conduzir [caso da Arábia Saudita], "é normal porque são nabas", acha o Bernardo louro. "A minha mãe não presta a conduzir. Não sei porquê, as mulheres têm menos jeito." O Bernardo moreno, porém, discorda veementemente: "A minha mãe é boa condutora.".A dissensão desvanece-se na resposta à pergunta sacramental sobre o que projetam fazer quando crescidos: futebolistas. E quando deixarem de poder jogar futebol por já não serem jovens? O Bernardo louro matuta um minuto, contrariado com a ideia de que pode haver necessidade de encontrar outra ocupação: "Quando já não puder ser futebolista, cantor." Duas profissões que não antecipa para as meninas que conhece, que "gostam muito de tratar de animais". O que, aventa o Bernardo moreno, poderá indiciar um futuro como "tratadoras de golfinhos." Distinções entre os dois grupos que se reiteram nas brincadeiras habituais: "Elas gostam de barbies e assim, nós é a PlayStation."."Algumas gostam de ser rapazes".Mas há exceções, adverte o Bernardo moreno: "Algumas raparigas gostam de ser rapazes. Como a Matilde [uma colega da escola que, informa a mãe do Bernardo louro, é a melhor amiga do filho], por exemplo." E isso vê-se como? "Gosta muito de futebol. E está sempre connosco e sempre a portar-se mal como um rapaz." O que é portar-se mal "como um rapaz"? "Responde à professora, é mal-educada, bate em tudo e todos.".Se a rapariga que "gosta de ser rapaz" é descrita com admiração, de rapazes que "gostam de ser raparigas" não parece haver notícia. E os dois torcem o nariz à possibilidade de, por exemplo, usarem a cor conotada com elas: "Cor--de-rosa? Não gosto, não é de rapaz." A não ser que, acrescenta o Bernardo louro, se trate de chuteiras. Quer muito umas rosa, como as que viu "no Ronaldo, no Rui Patrício e no Di María". Mas "se a minha mãe aparecesse com uma T-shirt cor-de-rosa eu não usava, claro que não. Porque é de rapariga." Como é que o cor-de-rosa passa de desejado a odiado consoante nos pés ou no tronco, não explica. Mas se calhar é questão de Cristiano Ronaldo aparecer com uma camisola dessa cor e passará a ser um must. Afinal, assevera Lara, a mãe do Bernardo Louro, ele já lhe pediu brincos de mola para levar para a escola, para imitar os seus futebolistas e cantores favoritos, e até já apareceu em casa várias vezes de unhas pintadas. "São as miúdas na escola que lhe pintam as unhas, e ele anda todo contente. Também já me apareceu com eyeliner, rímel..." Ri-se. "Tínhamos medo do que poderia suceder quando levou os brincos, mas disse-nos que os outros miúdos tinham dito que estava muito fixe." Houve algumas reações menos simpáticas - de adultos. "O professor de ginástica perguntou: "Mas agora és paneleiro?"", conta Rodrigo, o padrasto de Bernardo. "E no clube onde ele anda no futebol", acrescenta Lara, "disseram qualquer coisa das unhas também.".O remoque do professor não passou em claro: Rodrigo foi à escola falar com a diretora. "Mas ela disse que não acreditava que o professor tivesse dito aquilo, ou então que se o disse foi na brincadeira." Encolhe os ombros. "Na brincadeira?! Como se aquilo fosse uma brincadeira aceitável. Claro que o professor nunca iria admitir que disse uma tal enormidade." Rodrigo e Lara, ele radialista, 34 anos, e ela empresária, de 32, suspiram. A atitude descontraída em relação aos estereótipos de género é identificável no filho de ambos, um bebé de 2 anos cujo cabelo, preso no alto da cabeça num totó, leva a repórter a provar a renitência dos ditos estereótipos: "É uma menina, não é?" Lara sorri, como quem já se deparou muitas vezes com a confusão: "Não, é o Tristão.".Rodrigo esteve, com Lara, presente durante a conversa com os Bernardos, sempre calado e sem qualquer reação, enquanto dava o lanche a Tristão. Agora que o enteado foi brincar no parque com o amigo, comenta o que ouviu. "Estava com curiosidade de saber o que ele ia dizer. Porque sei que aquilo que nós tentamos passar-lhe em casa é uma coisa, aquilo que ele apanha de outras influências é outra. E o pai dele tem uma visão muito rígida, já aconteceram algumas coisas chatas." Lara dá um exemplo: "Uma vez cortámos-lhe o cabelo um pouco mais curto dos lados e maior em cima, como usa o Ronaldo. Ele estava muito contente, mas quando foi para o pai voltou com o cabelo todo rapado." E, acrescenta Rodrigo, "o Bernardo tem Instagram. É muito fechado e controlado mas, claro, o pai tem acesso e um dia destes o miúdo pôs lá uma foto com as unhas pintadas e comentou: "Só espero que o pai não repare nas unhas." Faz-me lembrar um dia, quando eu era miúdo, em que me disseram: "Larga a Barbie que o teu pai está a chegar." Estava a brincar com a Barbie de outra criança e havia o medo em relação à forma como o meu pai reagiria se me apanhasse com a boneca. É ridículo que passado este tempo todo ainda haja tanta gente a pensar assim."."Eles não gostam de cor de rosa".É menina ou menino? A distinção, sob a forma de pergunta, começa logo na gravidez, quando se questiona a prospetiva mãe sobre o sexo do bebé, e continua quando, como se passou com Tristão, nos deparamos com a criança. Como se fosse absolutamente indispensável procedermos a essa identificação antes de qualquer outra, e ela fosse determinante no estabelecer da relação. Como se fosse impossível pensar numa criança sem a arrumarmos num dos grupos. Não admira pois que isso mesmo suceda, de acordo com a literatura científica, com as próprias, e que o núcleo central da identidade de género se forme, como defende a psicóloga americana Janet Spence, antes mesmo de a criança ter capacidade verbal. Sendo mesmo prévia, diz Cristina Vieira, investigadora em Ciências da Educação e Psicologia da Universidade de Coimbra, à noção das diferenças corporais e sexuais - ou seja, à consciência de que elas têm "pipi" e eles "pilinha". "É algo que aprendem por observação. Sabem que ser menina ou menino é fazer certas coisas e gostar de certas coisas." Ou seja, comportar-se de certa maneira. A ponto de as crianças, diz a académica, pensarem, até certa altura, que se usarem a roupa ou a cor do outro grupo se transformam: "Aos 8 anos as crianças já sabem que se pintarem as unhas ou trocarem a roupa não vão mudar de sexo. Mas antes têm receio de mudar de categoria.".Ou seja, ao contrário daquilo que será a noção intuitiva, a divisão menina/menino baseia-se, para as próprias crianças, naquilo que são as normas de conduta e aparência que nelas são projetadas, e não num qualquer "essencialismo". O que explica o quase pavor das crianças - e aqui, sobretudo dos rapazes, muito mais oprimidos e formatados no que respeita à construção da sua identidade, como os homens são, refere Cristina Vieira, enquanto pais, muito mais rígidos na imposição dos estereótipos - face à possibilidade de usarem algo que é associado ao outro grupo, como é o caso do rosa, ou de participar em certas brincadeiras. Ou, como aponta a académica, de se aplicarem nos estudos - um comportamento que é considerado "típico" das raparigas, como o "portar-se mal", é visto como "de rapaz" (facto evidenciado na entrevista dos Bernardos). Os estereótipos podem assim ser em parte responsáveis pela alta taxa de abandono escolar dos rapazes..Inês, como os outros entrevistados com 9 anos, nunca pensou muito sobre estas diferenças e decerto não suspeita, para já, dos seus efeitos. Questionada sobre como seria se tivesse nascido rapaz, diz que pensa que "era igual." Mas logo de seguida acrescenta: "Talvez faça diferença nas brincadeiras, na roupa. Nas cores. É mais nas cores favoritas e essas coisas. Eles não gostam de cor de rosa - não sei porquê, porque o cor-de--rosa pode ser uma cor igual às outras. Se calhar não gostam por causa de o cor-de-rosa aparecer muitas vezes com brilhantes." E se um rapaz aparecesse na escola de cor-de-rosa, acha Inês, "iam gozar com ele e dizer que estava vestido de menina. Mas eu não gozava. Acho que não faz sentido nenhum"..Se as cores lhe surgem como um sinal de distinção "sem sentido", os brinquedos e brincadeiras, porém, já parecem a Inês corresponder a algo mais intrínseco: "Não há nenhum rapaz [na escola] que brinque com bonecas, geralmente pedem uma bola para jogar futebol. Porquê? Talvez as raparigas gostem mais de brincar a coisas calmas. Eles gostam de brincadeiras com mais pressão." Outra coisa em que reparou é que "os rapazes raramente choram". Aliás, confessa, "eles chateiam-me todos os dias, gozam. Dizem que sou uma chata, que choro demasiado quando me magoo, quando estou triste. No outro dia perguntei a um colega porque me acha uma chata e ele disse que era porque os outros me acham uma chata"..Este desprezo evidenciado, até propagandeado, pelos rapazes face a comportamentos que consideram "típicos de menina", não raro chegando ao bullying, é analisado por Miguel, de 10 anos: "Já vi na escola os meninos a chatear as meninas - a correr atrás delas e as meninas fogem. Acho que não devia acontecer e digo para eles pararem. Não sei porque acham que têm de chateá-las. Elas nunca fazem isso - é estranho." Afirmando-se igualitário nas amizades - "os meus amigos são tanto rapazes como raparigas" -, estabelece, no entanto, uma distinção: "Temos conversas diferentes. Com eles é mais sobre jogos de computador, com elas é mais sobre jogos ao ar livre." Aliás, acha mesmo que "é diferente ser rapaz e ser rapariga. Os rapazes gostam de fazer umas coisas e as raparigas gostam de fazer outras. Os rapazes gostam mais de estar sozinhos e as raparigas juntas." Não tem, no entanto, de ser assim: "Podiam jogar às mesmas coisas em vez de estarem separados." De resto, Miguel, que sonha ser "cientista de química", dava-se mais com raparigas na pré-primária. "Porque os rapazes estavam sempre a jogar futebol e eu não gosto." Ainda assim, demarca-se do universo das meninas: "Nunca tive uma boneca e não gostava de ter tido. E cor-de-rosa não quero usar, porque a maioria dos rapazes não usam rosa. Sentia que se usasse iam ficar a olhar para mim.".Lembrando ter havido um tempo, "antes do 25 de Abril, em que as mulheres usavam um manto preto e não podiam votar", considera-o "muito injusto". As mulheres devem ter os mesmos direitos que os homens, discorre. "Deviam ser iguais aos homens e os homens iguais às mulheres e não devia haver diferenças entre as coisas que faziam e vestiam. E eu já podia vestir cor-de-rosa.".O apartheid do rosa e sua história.Donde virá este espantoso, dir-se-ia mesmo mágico, poder do rosa como marca da categoria "feminina"? Vai a ponto de a sua utilização por homens, e mais ainda em crianças do sexo masculino, ser encarada como transgressora, até transmutadora, capaz de alterar a identidade de género ou pelo menos de pô-la em dúvida. O feito é tanto mais espantoso quanto, num passado não tão distante, a cor foi, imagine-se, "aconselhada" para meninos. Isso mesmo nos diz o livro Pink and Blue: Telling the Girls from the Boys in America (Cor de Rosa e Azul: Distinguindo as Raparigas dos Rapazes na América), da historiadora Jo Paoletti, publicado em 2012. Durante séculos, diz ela, as crianças foram vestidas com o mesmo tipo de roupa, fossem rapazes ou raparigas, até aos 6 anos. Exemplifica com uma foto de Franklin Delano Roosevelt (presidente dos EUA de 1933 a 1945) aos 2 anos, em 1884, de cabelo comprido e vestidinho branco. O branco, de resto, imperava na roupa de criança - como qualquer álbum de família do início do século XX permite constatar. O rosa e o azul, como outras cores pastel, começaram a ser usados em meados do século XIX, mas sem vinculação a sexo. Quando esta surgiu, porém, foi exatamente ao contrário do que hoje é tido como inquestionável. Num artigo de junho de 1918 da revista do departamento de criança dos armazéns americanos Earnshaw, citado no livro de Paoletti, lê-se: "A regra geralmente aceite é rosa para os rapazes e azul para as raparigas. O motivo é que o rosa, sendo uma cor mais decidida e forte, parece mais apropriado para os rapazes, enquanto o azul, mais delicado e suave, é mais bonito para as raparigas.".Noutras revistas aconselhava-se o azul para crianças louras e o rosa para as morenas. E em 1927, num quadro publicado naTime Magazine com as cores recomendadas para meninas e meninos pelas principais lojas americanas, várias indicavam o rosa para meninos. Só a partir de 1940, sem motivo descortinável, se começou a impor o azul para meninos e o rosa para meninas. "Podia ter ficado ao contrário", comenta Paoletti, observando que o movimento feminista conseguiu, a partir dos anos 1970 e até meados dos 1980, impor roupa mais neutral para as crianças. A meio da década de oitenta, porém, tudo mudou: a historiadora, que teve dois filhos, um em 1982 e outro em 1986, deu-se conta, quando do segundo nascimento, de que até as fraldas descartáveis tinham passado a ter cores "de menina" e "de menino". Entre as razões para este retrocesso na luta contra os estereótipos de género avultará a comercial: se antes as crianças podiam herdar a roupa - e demais parafernália - umas das outras, a distinção totalitária das cores passava a obrigar a comprar tudo de novo caso o bebé seguinte não fosse do mesmo sexo. Seja qual for a interpretação para a alteração, porém, o certo é que aquilo que é tido como uma "tradição" não passa de uma invenção da indústria da moda. E qualquer pretensão da existência de uma ligação "natural" entre o sexo das crianças e as cores, ou, como tantas vezes se ouve, "uma atração congénita" das meninas pelo rosa e "correspondente" aversão dos meninos revela-se o que é: uma bela tolice. Que algo assim se tenha tornado tão inquestionável permite ver a tremenda força das convenções e dos automatismos associados ao género.."Importantes como os homens".Não é possível saber como se desenvolveriam e relacionariam as crianças se os papéis de género não lhes fossem tão reiteradamente - dir-se-á mesmo desesperadamente - impostos desde o berço. Mas Bárbara, 9 anos, está disposta a pensar sobre o assunto. "As meninas não precisam de estar sempre a brincar com bonecas. Acho que é um vício. Eu quando era mais nova também brincava muito com bonecas até que me mostraram o futebol e o flash [um jogo de apanhada]. E disse: "Uau? A sério? Há outras brincadeiras, não tenho de brincar sempre ao mesmo." E larguei as bonecas." A escola dela, conta, jogou "um campeonato contra a Casa Pia e houve duas raparigas na equipa. Fiquei feliz por saber que as raparigas também jogam". Orgulhosa, comunica que até já partiu um braço a jogar: "Era eu a baliza e defendi a bola.".Convicta de que não há diferenças entre raparigas e rapazes quanto ao que podem fazer, lança-se numa longa preleção, enquanto passeia sobre os bancos de pedra do jardim da Fundação Gulbenkian: "Antigamente as mulheres eram julgadas, não podiam sair de casa sem permissão dos homens, não podiam tirar dinheiro do banco, não podiam fazer quase nada. Porque é que os homens têm de ser mais importantes do que as mulheres? É a minha pergunta. Agora acho que estão a tratar melhor as mulheres. Mas antes os homens eram mais bem tratados, e não era justo. Agora acho que já chegámos à igualdade. Mas ainda estou com esta pergunta na mente. Até porque em alguns países ainda estão a acontecer essas coisas. As mulheres são importantes como os homens, e ponto final. É simples de resolver. É só achar que são iguais.".Mas não é assim tão simples, afinal. Entre os seus amigos há quem"ainda ache que os homens são mais importantes do que as mulheres. Porque jogam futebol. É uma loucura. Chateia-me falar com eles sobre isso. Já não falo". Mas aqui fala. De tudo. Da divisão de tarefas no cuidado dos filhos, por exemplo: "Acho que os dois, homens e mulheres, deviam tomar conta dos bebés. Imagina que dizíamos: "Agora são os homens a ficar a tomar conta de tudo." Achas que iam gostar? É como as mulheres; não gostam. Porque é que têm de ser sempre as mulheres a tomar conta?" O rosto encena uma dureza travessa: "Se fosse chefe disto tudo experimentava uma coisa nova: os homens ficam a fazer as coisas das mulheres e as mulheres a fazer as coisas dos homens. E íamos ver o que ia acontecer aos homens, para ver se gostavam ou não. Se não gostassem, paciência. Ficavam a fazer mais um ano ou dois, para seu castigo. Arrependiam-se e não voltavam a fazer mais isto." Trocavas os papéis, era? Bárbara faz que sim, muito séria no seu outfit de "rebelde" (foi assim que o classificou quando disse à mãe o que queria pôr para a foto: vestido preto e perfecto de cabedal da mesma cor): "Acho que os homens agora deviam ter menos direitos do que as mulheres." Porquê? "Já que durante muitos anos as mulheres tiveram menos direitos, deviam ser eles a ter menos, para compensar tudo o que eles nos fizeram. Não deviam ter o direito de andar livres com a cara destapada. Deviam andar sempre com a cara tapada. Ou tinham de pedir permissão às mulheres para fazer tudo." Para, respira fundo: "Quantas páginas já escreveste? Já chega?".Chegar chegava, mas Bárbara ainda tem algo mais a dizer: "Antigamente homens e homens juntos e mulheres e mulheres juntas não podia ser. Mas não tem problema nenhum gostarem uns dos outros. Fazem bem em experimentar coisas novas. Se eu gostasse mesmo de uma rapariga e ela quisesse namorar comigo, namorávamos. Não há diferença nenhuma." E mais: "Qual o problema de uma rapariga usar calças e um rapaz usar saia? Outra coisa é dizerem que só os rapazes podem ficar de tronco nu. Nem pensar. No ano passado estava muito calor e estava com a minha irmã [dois anos mais nova] e ela tirou a camisola e ficou de tronco nu. Cada pessoa é feliz como é. Pode usar o que lhe apetecer."."São igualmente seres humanos".Não, não é todos os dias que se encontra uma criança como Bárbara,com vontade de virar tudo do avesso. Pedro, por exemplo, não tem essa ambição nem vocação para discursos. Quando não sabe o que dizer, reconhece, doce: "Ainda não tive muito tempo para viver, para perceber isso." É o caso da distinção nos brinquedos entre "de rapaz"e "de rapariga". Não sabe a que se deve mas acha mal: "As raparigas deviam brincar com super-heróis e isso e os rapazes também com as barbies." No seu quarto, no entanto, à exceção do piano (tem aulas de música e toca para atestar a habilidade) e dos desenhos muito coloridos espalhados pelas prateleiras, só tem brinquedos conotados com o universo masculino. Legos montados em formas alienígenas, máscaras de super-heróis e robôs..Já outra distinção, a de existirem formas de vestir diferentes para meninos e meninas, não o choca."Isso acho que pode ser. Até faz sentido, não há um problema por causa disso." Quanto às cores, se há meninas que não gostam de rosa, o que lhe parece significar que não é a cor de todas as raparigas, crê que os rapazes "nascem a não gostar". Mas os gostos inatos ficarão, na perspetiva de Pedro, por aí. Cuidar de crianças, por exemplo, acha que é apropriado tanto a homens como a mulheres: "Antigamente eram mais as mães, agora acho que podem ser os dois. Já são os dois. Antes creio que era porque os homens iam para a guerra. Não sei, é o que leio nos livros, não vejo outra resposta.".Recordado de que houve um tempo, em Portugal, em que as mulheres não tinham os mesmos direitos legais que os homens, fica atónito por saber que nessa altura a mãe, se casada com o pai, teria de lhe pedir autorização para sair do país ou ter um emprego. "Então se havia essa regra devia ser também para o pai; ele também devia ter de pedir autorização. Mas o ideal era não ter de pedir, só avisar." Tudo recíproco, portanto. E mesmo serem os homens a ir para a guerra enquanto as mulheres ficavam em casa não lhe faz sentido. "Deviam decidir entre eles se era a mulher que ia para a batalha e ele ficava a cuidar dos filhos. São igualmente seres humanos.".Tudo lhe parece tão fácil de resolver, que não vê grande interesse no assunto. Talvez não veja mesmo assunto: não costuma debater estas coisas com os amigos, só às vezes são mencionadas nas salas de aula, "na semana do 25 de Abril, sobretudo". Suspira: "Vamos ficar aqui a falar disto muito tempo?".O ideal, para usar uma expressão do Pedro, era que não fosse preciso falar mais disto. Mas falar ajuda a pensar, e pensar, bom, toda a gente sabe o que faz. Dois dias depois da entrevista, a mãe de Miguel manda uma foto do filho. Está de costas, a olhar para o horizonte. Com uma T-shirt cor-de-rosa. "Não falámos de nada", diz ela. "Mas ele apareceu com esta T-shirt."