Quando se evoca Pretty Woman - Um Sonho de Mulher, há pelo menos dois lugares-comuns que nos assaltam: o famoso refrão da música homónima de Roy Orbison e as letras garrafais a cor-de-rosa-forte do título no cartaz em que se vê Julia Roberts, de minissaia e botas pretas de cano alto até ao joelho, a puxar a gravata de Richard Gere..Uma referência sonora e outra visual que dizem muito sobre a volta que o realizador Garry Marshall (1934-2016) deu ao tom original desta história sobre uma prostituta que faz um acordo lucrativo com um empresário, sendo sua acompanhante em eventos durante uma semana. Entenda-se: não era nem para ser um conto de fadas nem para despertar um sentimento de leveza como aquele que se experimenta ao escutar o "Pretty woman, walking down the street..."..Trinta anos depois (estreou-se a 23 de março de 1990), a protagonista, Julia Roberts, assume que dificilmente um filme como este poderia ser feito hoje, representando um alvo fácil para fundamentalismos de toda a ordem. Mas se é verdade que Marshall deu uma roupagem benigna ao que, à partida, seria tudo menos bonito, também é verdade que a Vivian de Roberts não é uma simples princesa à espera do seu príncipe..O talismã Julia Roberts.Para além de ser uma das comédias românticas com maior bilheteira mundial, este foi o filme que catapultou a carreira hollywoodesca da então jovem Julia Roberts - tinha apenas 21 anos na altura da rodagem -, ela própria responsável pela presença de Richard Gere no projeto. O ator tinha recusado várias vezes o papel, mas acabou por se render ao "please say yes" de Roberts, desde logo, a marcar o ascendente feminino... E esta não foi a sua única demonstração de empenho. Segundo a mulher do realizador, Barbara Marshall, então enfermeira numa clínica gratuita de Los Angeles que recebia muitas profissionais do sexo, a atriz quis acompanhá-la num dos seus dias de trabalho e conhecer algumas dessas mulheres. Ainda que receosa de a pôr em contacto com uma realidade pouco agradável, Barbara concretizou-lhe a vontade e elas, sem rodeios, ensinaram-lhe o modo de caminhar na rua e como abordar um cliente através da janela do carro. Algo que definitivamente deu frutos; basta recordar o momento em que Vivian, de peruca loira e casaco vermelho, se aproxima do carro de Edward/Richard Gere logo no início..Um argumento com o título 3000.Talvez sem esta experiência concreta da atriz a prostituta Vivian não fosse uma personagem tão credível, tão realista, apesar da necessidade de encaixar no registo da comédia romântica. De facto, é essa rugosidade da "mulher da rua" que Roberts conserva para lá de qualquer fairy tale. Uma rugosidade que surgia bastante sublinhada no argumento original de J.F. Lawton, que não tinha nada de cor-de-rosa e se intitulava 3000 - o montante que Edward paga pelos serviços de Vivian. Nele, a protagonista seria uma cocainómana e, em vez do inevitável final feliz, tudo acabaria com uma gigantesca discussão, em que ele a expulsa da limusina depois de a obrigar a receber o dinheiro... Que longe estamos da imagem de Edward/Gere, um "príncipe", a sair dessa mesma limusina e a subir as escadas de emergência do prédio de Vivian/Roberts para tornar real o seu verbalizado ("I want the fairy tale") sonho de conto de fadas. Aliás, não é por acaso que nesse final também se ouve alguém que passa a dizer: "Bem-vindos a Hollywood! Qual é o seu sonho? É aqui que toda a gente vem. Isto é Hollywood, a terra dos sonhos.".Cinderela de Beverly Hills.O Pretty Woman de Garry Marshall é então o filme que agarra nessa circunstância do encontro entre uma prostituta de Beverly Hills e um homem endinheirado para a revestir de uma tensão romântica, praticamente impossível na primeira ideia do argumento. Nesta fortaleza que é o género da comédia, a conceção da personagem de Vivian é uma espécie de cruzamento entre Eliza Doolittle (My Fair Lady) e Irma La Douce (do filme homónimo de Billy Wilder). Tal como Eliza, ela irá aprender as maneiras e a postura de uma mulher da alta sociedade, mas à semelhança de Irma é o seu lado genuíno que desperta o amor de Edward..E, contudo, se parece que não há ruído nenhum no filme, Marshall não ignorou completamente a realidade da prostituição - o objetivo da cena mais pesada do filme, que mostra Vivian a ser vítima de uma tentativa de violação por parte do sócio de Edward, é revelar a fragilidade da condição destas mulheres. Obviamente, nos tempos que correm, tudo é passado a pente fino pelo movimento #MeToo, e a geral aparência "cor-de-rosa" da história não é salva por uma cena. Nem mesmo o musical baseado no filme, que se estreou primeiro na Broadway, em Nova Iorque, e que estava agora em cena no Piccadilly Theatre de Londres, para assinalar o aniversário, escapa a essa visão desdenhosa da Cinderela de Beverly Hills..Talvez para desfazer esse preconceito valha a pena lembrar que, ao longo de todo o filme, é Vivian/Roberts quem domina a narrativa: é ela quem faz negócio, é ela quem estabelece os termos da relação, é ela quem diz que quer o seu conto de fadas e, finalmente, é ela quem o alcança. Só é apanhada de surpresa quando Richard Gere lhe entala os dedos, a brincar, na caixa do colar precioso que vai usar numa noite de ópera. O riso espontâneo de Julia Roberts nesse instante improvisado pelo ator é a quintessência do "sonho de mulher" que estava a nascer no grande ecrã.