O continente americano

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O Abade Correia da Serra, amigo de Jefferson, sendo este um dos principais inspiradores da Declaração de Direitos (1776) e da estrutura do constitucionalismo dos Estados Unidos, previu que esse novo Estado federalista teria o encargo de ser potência dominante no Norte do continente, e o Brasil, que desenvolvia a experiência do breve Reino de Portugal, Brasil e Algarves, viria a ter igual função no Sul. Aquilo que viria a ser chamado "Jefferson democracy", a partir do seu Manual de 1796, e que sustentava que a descentralização do poder era a maior garantia para a sustentabilidade dos princípios desse documento fundamental, em todo o caso não impediu que o seu libertado país viesse a ser um verdadeiro "império", sem ter de utilizar o nome que viria a cair em descrédito, quer para repovoar o território, depois para o alargar, facilmente adotando a famosa doutrina do big stick que hoje anda em discursos diferentes com a fórmula de "a fronteira de interesses ser mais vasta do que a fronteira geográfica" (Putin).

Hoje, o Abade Correia da Serra ficaria seguramente surpreendido pelo facto de as suas previsões de intelectual respeitado estarem a ser tão abaladas pelos factos. E o mais inquietante é que a crise brasileira não vem de circunstâncias externas preocupantes, mas de uma desordem interior que não pode deixar de refletir-se nas relações internacionais, já suficientemente complexas sem esta contribuição partilhada designadamente por vários Estados latinos.

É certo que internamente os EUA, que ainda respiram a aura de serem o líder do Ocidente, não apenas no que toca à segurança, mas também aos avanços da ciência e da técnica, devem estar gratos ao que alguns chamam disporem de uma "Jeffersonian democracy", que para além do sufrágio que responsabiliza os cidadãos na escolha de quem vai exercer o poder, também cuida com sabedoria dos princípios da divisão e separação de poderes, na necessidade de no percurso histórico da formação do novo Estado ser fundamental o "federalismo", o fortalecimento do poder judicial, e finalmente a indispensabilidade de efetivos checks and balances, de modo que cada ramo do poder possa ser impedido de exceder-se pela vigilância e decisão dos outros.

Tudo precauções extremamente úteis quando, por existirem, evitam a necessidade de intervir, mas que quando é necessário intervir é porque a prudência governativa mostra falhas num dos braços da soberania, e vista a dimensão do poder americano a inquietação deixa de ser apenas doméstica. Não é fácil ter uma leitura tranquilizante da situação americana atual, não apenas pelas diferenças do executivo com o legislativo, mas também com a sociedade civil, não apenas com a jurisdição interna, mas também com as interdependências externas, incluindo a área do hoje assumido big stick que se mostra descontraído, nem sempre infelizmente usado para melhorar o trajeto.

No Sul, a situação do funcionamento do aparelho político brasileiro, com evidente crescente intervenção do poder judicial, crise que já vimos faz anos na Europa com inquietantes consequências, não pode deixar de preocupar todos, países e pessoas, que amem o Brasil, a beleza, a alegria, a luminosidade, a bondade do povo, e a importância que tem para a organização da América Latina para a segurança do Atlântico Sul, para a solidariedade dos povos da CPLP, e para a intervenção humanista na organização do mundialismo, a começar pela ONU. Neste caso, que desperta interesses especialmente a Portugal, por razões não apenas históricos, é a questão constitucional que mais embaraça o rápido regresso à estabilidade. E o Abade Correia da Serra oficiaria para que rapidamente a sua visão fosse confirmada pela intervenção das elites responsáveis e do povo generoso e sofredor das consequências.

Não é apenas no Sul e no Norte do continente americano que a justiça social está afetada, porque as buscas da reforma do Estado, em grande parte exigida pelas dificuldades do Estado social, desarmado perante a crise económica e social, pode levar o povo mais pacífico aos excessos causados pelo desespero. A compreensão deste facto fortalecerá a visão, generalizada no mundo, da maneira de ser brasileiro, cuja imagem está profundamente estabelecida na comunidade das Nações. Mas é a reformulação esperada de uma ordem mundial renovada que exige dos governantes envolvidos, no Norte e no Sul do continente americano, sobretudo as renúncias ou revisões necessárias, porque foram excedidos pelas circunstâncias e ética de governo, para que com sabedoria, para além dos erros cometidos que possam existir e assumir, consintam uma renovação pacificada da sua visão dos países e do mundo, por responsáveis vindos da nova geração, que é a do globalismo. De outro modo estão a substituir, a norte e a sul, a fundada esperança de um grande futuro por um parágrafo na história de um presente outonal.

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